domingo, 31 de março de 2013

Quem inventou essa tal de TPM?



Alguém, por favor, saberia me informar o responsável, o “gênio”, o “infeliz das costa oca” que inventou essa tal de TPM? Eu gostaria muito de saber de quem se trata, de saber seu nome, só para ter o prazer de procurá-lo, de caçá-lo para matá-lo com minhas próprias mãos. Se por um acaso o dito cujo já tiver morrido não há problema algum, pois posso muito bem procurar mestres em ciências ocultas e coisas afins para fazê-lo voltar à vida só para eu poder ter o direito de matá-lo (novamente), dessa vez de forma tão bem morrida que ele jamais poderá ser ressuscitado, por mais poderosa que seja a magia.
É sério isso que estou falando! Eu quero, porque quero, porque preciso saber quem é (ou foi) esse “escroto”, como se diz no bom nordestinês. Se for um homem, com certeza é um desses tipos que na minha terra se chama de “fulêro”, e se for uma mulher com certeza trata-se de uma feminista mal-amada-revoltada, que criou, difundiu e popularizou essa tal de TPM só como uma forma de vingar-se da sociedade e dos seres humanos, só e unicamente porque ela é uma mal-amada.
            Desde que o mundo é mundo, que há seres humanos andando sobre duas pernas, que há fêmeas da espécie, as mulheres têm, a partir de determinado momento de suas vidas, o que em nossa época se chamou de puberdade, o início do chamado ciclo menstrual, que é algo muito complexo (para nós, homens), e consiste num processo de maturação do óvulo, liberação de hormônios, etc., etc., etc. Esse período se repete uma vez a cada mês, embora existam algumas mulheres que têm um ciclo mais longo e outras mais curto, até uma idade bem avançada. Pois bem, durante o período em que a mulher atravessa esse ciclo, sempre, elas sofrem com algumas alterações hormonais, o que é perfeitamente natural. Acarreta em mudança de humor, mas nada muito grave, normalmente só no período que antecede a menstruação e algumas até pós-menstruação.
Os homens, desde que o mundo é mundo (pelo menos grande parte deles), entendem esse período tão belo da natureza feminina e o tem como “um período sagrado”, em que (os normais pelo menos) não tocam nelas e deixam que tudo passe, para só então voltarem a levar suas vidas (a dois) normalmente. Até aí tudo bem, normal, faz parte da natureza. É tudo plenamente compreensível, até para o mais bruto dos homens. No entanto, o que é inadmissível é que tudo, hoje em dia, tenha como desculpa essa tal de TPM.
            Mulher ‘tá de mau-humor? Culpa da TPM. Mulher está o dia inteiro dando respostas de bate-pronto, sem pensar no que fala e em suas consequências? Culpa da TPM. Mulher acorda tarde e chega atrasada ao trabalho? Culpa da TPM. Mulher ‘tá chorona? Culpa da TPM. ‘Tá brigando com todo mundo? Culpa da TPM. Não segurou direito os pratos na hora de lavar a louça? Culpa da TPM. ‘Tá com sono? Culpa da TPM. O time por que torce perdeu um campeonato? Culpa da TPM. Não acertou nenhum número da Mega-Sena? Culpa da TPM. O candidato em quem votou não ficou nem na suplência na última eleição? Culpa da TPM. Crise na Bolsa de Valores? Culpa da TPM. Mais uma guerra e tensão no Oriente Médio? Culpa da TPM.
            Droga! Santo-Deus! P* que Pariu! É tudo “culpa da TPM”! Tudo que acontece, tudo que se faz de errado é culpa dessa tal da TPM. A TPM é como uma espécie de desculpa-sempre-aceita, uma espécie de escudo que se aprendeu a usar, e o pior de tudo é que a gente sempre aceita essa desculpa esfarrapada.
            - Ah, amor, desculpa não ter preparado o jantar especial para nós que eu havia prometido e que estávamos combinando há quatro meses. É que estou de TPM e você entende, né?
            - Claro, amor. Eu entendo. – Embora esteja pensando em esganá-la e pedir para que ela deixe de usar essa tal da TPM como uma desculpa para tudo.
            O que me deixa indignado é exatamente a “desculpa-generalizada-para-absolutamente-tudo” que é essa tal de TPM.
            Antigamente as mulheres não tinham isso – elas nem sequer sabiam o que era isso. Mudança de humor, talvez, já que era algo natural ao período exclusivo do ciclo menstrual, mas TPM elas não tinham, não.
            TPM é um problema (e uma desculpa) da mulher moderna. As mulheres de antigamente e que hoje são idosas passaram por todo ciclo natural que as mulheres jovens passam hoje, mas nunca sofreram dessa tal de TPM.
            Se chegarmos para entrevistar uma velhinha, por exemplo, e lhe perguntarmos sobre a TPM, ela vai lhe dar uma resposta como: “TP o quê, meu filho? Sei o que é isso não. Já ouvi falar, sim, mas não sei do que se trata.”
            Essa situação é séria, muito mais do que essa crônica se propõe a apresentar (e a debater)!
            A mulher, hoje, além de “sofrer” dessa tal de TPM - o que deveria ocorrer somente no período do ciclo menstrual, no máximo ter suas oscilações de humor dois dias antes e dois depois - passa um mês inteiro nesse estado. Mentira: o mês inteiro não, mas que são pelo menos 26 dias, isso é inegável. TPM, na verdade, ultrapassou os processos fisiológicos e tornou-se um “estado de espírito”.
            Taí! Acho que desvendei, se não o Segredo do Universo, pelo menos o da TPM. A TPM, na verdade, é um estado de espírito. Tudo bem que seja um estado-permanente, mas que é do espírito, isso é inegável.

domingo, 24 de março de 2013

Mea Culpa



Ninguém mais precisa procurar pelo culpado por tudo, por todas as “desgraças” que estão acontecendo em nosso país: eu sou o culpado.
            Eu sou o grande culpado por toda essa corja de políticos que está aí no poder, pelas pessoas a quem dei o cargo, a quem escolhi para me representar no dia da eleição, por todos esses que ao invés de política se entregaram ao vício e práticas da politicagem. Eu sou o grande culpado, portanto, por toda a desgraça que a política nacional tem causado. Sou o único culpado por escolher pessoas que vão ocupar os cargos para defender os meus interesses, particulares, de minha classe, ao invés de pensar em defender os interesses da nação, de todas as pessoas.
            Sou o único culpado pela inatividade, pela passividade perante tudo que acontece. Poderia e deveria lutar mais, ter feito mais barulho, me fazer entender, gritar mesmo, mas, ao invés disso, preferi/ optei, pelo conforto e a paz de meu lar, e fingir que tudo que está acontecendo não me diz respeito. Se estoura mais um escândalo de corrupção, finjo indignação quando estou com amigos e até sinto certa ojeriza ao meu país quando assisto a um noticiário ou leio notícias dessa ordem num jornal qualquer, mas é um sentimento de repulsa passageiro, e logo estou agindo como se tudo aquilo não fosse comigo. Vejo noticia após notícia em telejornais, de escândalos após escândalos de corrupção, de mil e uma CPIs, das práticas políticas (ou, melhor dizendo, das politicagens) tão comuns, e a única coisa que penso é “mais uma” e “não vai acontecer nada de mais com nenhum dos envolvidos”, e pronto. Minha única ação é desligar a televisão ou mudar de canal, ou fechar a revista ou o jornal.
            Sou eu quem coloca os Renan Calheiros, os Bosonaros, os Dirceus, os Jenuinos e os Felicianos da vida onde eles estão, sou eu quem lhes dá amplos poderes.
            Sou eu o responsável por tantas leis defasadas, pela justiça injusta, por deixar que tanta coisa aconteça tanto “a torto e a direito”, só e unicamente por que “não estou nem aí”, porque não me preocupo, porque não fiscalizo. Sou eu aquele que não mais se choca com as injustiças...
            E eu sou culpado não só por isso, pelo que está acontecendo com o país; sou o verdadeiro e único culpado, também, por todas e tantas as miudezas que causam mal a tanta gente e as quais ninguém se dá conta.
            Sou o culpado pela televisão que temos, pelos BBBs de número intergaláctico que ainda estão por vir, só e unicamente por que eu lhes dou audiência, apesar de reclamar, reclamar e reclamar. Tais reclamações, confesso, são da boca pra fora, apenas. Quando estou só, em casa, quando ninguém mais vê, ligo a TV e coloco no canal a que tanto critico, acreditando que só nele eu vou estar bem informado, acreditando que ele é o detentor da única e universal verdade, que ele é o imparcial, que retrata os fatos tal como eles são, que ele só mostra o que me imprescindível, e se não é noticiado algo de que todos falam, algo que é importante, significa que é importante para um alguém, que não é importante para mim e não me diz respeito.
            Sou o culpado pela sujeira na rua, no bairro e na cidade, pois sou eu quem não joga o lixo no lixo, quem joga o papel quando ninguém está olhando na lixeira, quem joga o lixo pela janela do carro no meio da rua. E ainda tenho o descaramento de reclamar, para todo mundo ouvir, da sujeira!
            Sou eu quem não fiscaliza, quem “deixa pra lá”, que digo que aquilo não me diz importância, embora saiba, em meu íntimo, que aquilo, sim, é de meu interesse, que se eu ‘deixar pra lá” agora, depois não vou estar aqui, e o problema já não irá mais me afetar, já não mais “me dirá respeito”.
            Sou eu o grande e único responsável por toda essa baixeza que vemos na televisão e ouvimos nas rádios, pois sou eu quem lhes dá a audiência.
            Sou eu aquele que se julga “o puro”, “o incorruptível”, “o de consciência limpa”, sendo o primeiro a tentar proveito de algo, a oferecer “um trocado” para um guarda de trânsito para que ele não me multe, sou o que fura a fila, quem não respeita as leis.
            Sou eu aquele típico brasileiro, aquele que acredita e cuja lei universal é a do “jeitinho”.
            E sou eu, principalmente, aquele que está perpetuando tudo isso, quem está espalhando o mau exemplo, quem está deixando todo esse legado, toda essa herança maldita para as gerações vindouras, para que elas vivam nesse mesmo país que eu vivo, para que esse país viva sempre a se iludir naquele jargão de “Brasil, o país do futuro”, mas de um futuro nunca irá se tornar presente.
            Eu sou o culpado, e torno aqui, pública, a minha culpa. Não procurem mais por ninguém, não apontem mais seus dedos para ninguém, pois aqui estou eu, de consciência limpa, ao menos uma vez na vida, tirando um peso das costas, da consciência, ao me entregar para ser julgado, condenado e para cumprir minha pena, só e unicamente por ser o responsável por toda uma série de desgraças que têm acontecido no país e na sociedade.

domingo, 17 de março de 2013

O homem que contava estrelas



Desde pequeno, ele contava estrelas. Ficava todas as noites com os olhos voltados para o céu contando-as. As maiores tristezas por que passava eram nas noites em que o céu, à noite, estava encoberto, quando ele não via e não podia contar as estrelas. Muitas pessoas não o entendiam, não entendiam aquela sua obsessão. Para estas, as estrelas eram meros pontinhos luminosos na abóboda celeste, mas para ele era muito mais.
            As estrelas, para as pessoas, eram todas iguais, mas para ele, cada uma era única. Ele as batizava e, algumas, chegava até a dar de presente para pessoas que lhe eram muito especiais. Lembrava da noite em que deu, a sua primeira namorada, uma estrela, em que ela, no momento, acho aquele gesto dos mais românticos, mas, na noite seguinte, havia esquecido, por mais que olhasse para o céu, qual era a sua estrela. Ele, decepcionado por ela ter perdido tão importante presente, deixou que o relacionamento minguasse e acabasse por findar sem que ela entendesse os reais motivos.
            Noite após noite ele continuava com os olhos fixos no céu, naquela conta que não tinha fim. Quanto mais ele contava, mais estrelas surgiam. E uma vez, quando já adulto, saiu com amigos à noite. Enquanto os amigos bebiam, namoravam e se entregavam a prazeres diversos, ele mantinha-se com os olhos fixos no céu.Eles não entendiam os motivos dele ficar tanto tempo olhando para o céu e não aproveitar tudo aquilo que o mundo tinha a lhe oferecer, tantas coisas que ele poderia pegar e sentir, enquanto ele não conseguia entender como e por que as pessoas se entregavam a vícios tão passageiros se tinham aquela beleza sobre suas cabeças, nem por que eram tão insensíveis a ponto de, ao olharem para o céu, não verem tantas, tão belas e numeras estrelas.
            Tornou-se um adulto, um homem, a quem muitos lhe apontavam o dedo para chamá-lo de louco. Ele não ouvia tais insultos, pois sempre tinha mais o que fazer além de prestar atenção a coisas tão pequenas: ele tinha todo o céu a que prestar atenção, tinha todas aquelas infinitas estrelas para poder contar.
            Um dia, quando já era bastante velho, contaram-lhe a verdade sobre as estrelas, de que aquelas que ele via no céu, não mais existiam: eram luz de estrelas que não mais existiam. Quando ouviu aquilo, aquela verdade, ele chorou, e com os olhos repletos de lágrimas, com a visão turva, não conseguiu contar estrelas naquela noite. Nem na seguinte, nem na seguinte, nem na outra, na outra, na outra... Passou tantas noites sem conseguir olhar para o céu que adoeceu.
            Sentia-se, naquele momento, deitado na cama daquele hospital, um velho. Uma noite, quando acordou de repente, viu que estava sozinho, e olhou pela janela, que estava aberta, para o céu. Naquele pedaço de céu estavam as últimas estrelas que precisava contar. Então ele as contou: mais uma, duas, três, quatro... e quando terminou a contagem de todas as estrelas que havia no céu, sorriu para dentro de si com os olhos fechados. Ao reabri-los, viu que uma nova estrela havia surgido no céu, que uma nova estrela havia acabado de nascer, e foi então que ele se deu conta de que aqueles pontos brilhantes que via à noite no céu não eram luz de estrelas mortas, que não mais existiam, mas sim, de pessoas vivas que fechavam os olhos na terra e que passavam a ir emitir sua luz lá longe, no céu, para que outras pessoas, na terra, pudessem continuar a vê-las, sempre, que olhassem para o céu, que pudessem continuar a contemplar seus sorrisos. Ele deixou que seus olhos se fechassem e então foi para o céu, tornar-se, ele mesmo, uma estrela, para que um dia um alguém o olhasse e sorriso, para que um alguém o batizasse, para que um alguém o contasse.

domingo, 10 de março de 2013

O muro



Ele tinha medo, tanto que construiu ao seu redor uma intransponível muralha onde nada nem ninguém pudesse entrar. Ali, no alto de uma torre, ele ficava vigilante dia e noite, zelando por sua própria segurança. No início, pessoas e sentimentos ousaram se aproximar, mas vendo que por mais que tentassem, não conseguiam entrar naquela fortaleza nem que o homem que vivia ali dentro ousava abrir as portas e sair, desistiram.
            Ele não cansava, nunca, e sua resolução de se manter seguro e salvo para sempre era tamanha que passava noites em claro só com o intuito de ficar vigiando, para que nada se aproximasse e tentasse atravessar os muros de sua fortaleza.
            Com o passar do tempo, no entorno da fortaleza tudo se tornou deserto, tudo de tornou um imenso mundo estéril onde nada era capaz de sobreviver, e só quando isso aconteceu ele pôde, finalmente, se sentir seguro, pôde pregar os olhos e dormir uma tranquila noite de sono.
            Fechou os olhos e deixou que o silêncio e a paz o tomasse, mas, estranhamento, aquele silêncio guardava em seu seio algo pior do que todos aqueles medos que ele procurava manter do lado de fora, longe. Olhou ao seu redor, mas nada encontrou. Tentou conciliar o sono, mas não conseguiu. Seu coração batia com força em seu peito e sua respiração estava pesada. O medo tinha entrado e se escondido nas estranhas daquele silêncio, e agora o homem, estava perigosamente a sós, trancado naquela fortaleza, com ele.
            Abriu as janelas para que a luz de fora, seja do sol, seja da lua – ele não sabia que horas eram, pois havia perdido completamente a noção do tempo – pudesse entrar, mas percebeu que os muros que tinha construído eram tão espessos, altos e intransponíveis que sequer a luz do dia ou da noite conseguia entrar.
            Estava sozinho com algo que lhe metia tanto medo que lhe turvava os sentidos, e não havia nada que pudesse fazer, pois fora ele mesmo que se trancara ali com aquela solidão. Corria de um lado pro outro, desesperado, mas por mais que se afastasse, por mais rápido que fosse, jamais chegaria a ficar longe ou se afastar daquilo que temia; gritava, mas a única resposta que lhe chegava aos ouvidos era a voz solidão lhe dando com única resposta o eco das suas próprias palavras que reverberavam nas paredes de sua fortaleza.
            Desesperado, correndo de um lado pro outro, tentando fugir da solidão que o perseguia, ele parou em frente ao portão que o comunicaria ao mundo exterior e tentou abri-lo, mas não conseguiu. Deixou-se cair ali, e se deixou abraçar por aquela inexorável solidão que vinha em seu encalço, e quando sentiu os braços dela se fechando em torno de si, olhou para o alto, para os muros de sua fortaleza, e se deu conta de que havia construído não um local onde pudesse se manter seguro, mas sim a sua própria prisão, que tinha a exata forma de seu próprio mausoléu.

domingo, 3 de março de 2013

Um rosto estranho no espelho



Somente quando se olhou no espelho foi que se deu conta de que sequer se lembrava de seu próprio rosto. Aquele que o fitava nos olhos era um desconhecido. Aqueles olhos não eram seus, assim como aqueles lábios que não sorriam. Seu rosto havia se transformado em pedra.
            Buscou em sua memória, mas não conseguiu lembrar como nem quando se tornara pedra, quando se fechara dentro de si mesmo. Talvez tenha sido há muito tempo, quando lhe mandaram jogar aquilo que sentia no lixo, e ele, em sua insensatez, jogou, mas jogou junto todo o resto, tudo o que ele era, livrando-se, assim, não apenas de sua dor, mas também de quem ele era, de quem sempre foi. Ali, talvez, tenha sido o primeiro momento, o primeiro real motivo para ele vir a se fechar em torno de si mesmo, criando aquela carapaça intransponível de pedra que ele fitava agora diante do espelho.
            Tentou se reconhecer, ali, naquela imagem refletida, mas não conseguiu. Além de não se lembrar de seu próprio rosto e não conseguir ver qualquer relação entre si mesmo e o seu reflexo, aquele que o fitava do outro lado do espelho parecia o ser não-humano. Passou a mão no rosto e viu, no reflexo, uma mão dura e áspera tocando aquele rosto que não era o seu. Tentou arranhá-lo com as unhas, mas a sua pele era tão dura que a ponta de seus dedos doeram.
            Como pudera chegar àquele total estado de esquecimento?! Fechou os olhos na tentativa de retroceder no tempo em busca de explicações para tudo aquilo. Lembrou-se vagamente de um cheiro, um aroma doce e viu vagas luzes piscando. Lembrou que, poucos dias depois, quando inspirou fundo em busca daquele reconfortante cheiro e do brilho daquele sorriso, ele não estava mais ali.
            Abriu bem os olhos, entre surpreso e assustado, quando sentiu uma leve rachadura na sua pele de pedra. Passou o dedo sobre a rachadura, a fim de quebrar um pedaço da casca. Viu surgir, pouco a pouco, um pedaço de sua verdadeira pele que ainda existia por baixo da casca de pedra. Uma pele branca, que não tomava sol, que não era aquecida há tempos.
            As lembranças lhe vinham escassas, tão lentamente quanto o tempo que demora uma eternidade para passar. Lembrou-se da imagem de uma flor que vira certa vez brotar num terreno estéreo, uma flor tão bela, tão delicada no meio, no coração daquela terra seca e dura. Foi um longo tempo que aquela flor ficou ali, solitária, até que, não conseguindo mais suportar a aridez do terreno e o peso da solidão, acabou murchando e morrendo.
            Uma solitária lágrima brotou de seu olho e escorreu por sua face. Por onde passava, lascas da casca de pedra iam caindo, até que parte de sua verdadeira face ficou exposta, mas não, ainda, o suficiente para que ainda pudesse se ver como realmente era.
            Veio então, de supetão, uma lembrança recente, de um momento de frio, de muito frio, de uma longa noite de inverno em que estava sozinho, desesperado, desejoso de ver o primeiro raio de sol surgir no horizonte e aquecê-lo, tal como aquece um abraço num momento de solidão. Percebeu que há tempos não sabia o que era o calor do sol, muito menos o de um abraço.
            Agora chorava copiosamente, lembrando-se de tudo, dos reais motivos que o fizeram se tornar aquilo, a vestir e se fechar dentro de si mesmo, daquela pedra. Pouco a pouco, com as lágrimas que escapavam de seus olhos e escorriam por seu rosto, sua verdadeira face ia surgindo, e então ele se lembrou de tudo: de quem era, de tudo por que passara, de todos os pequenos e grandes motivos que o levaram a chegar até ali, naquele estado, transformado e sentindo-se seguro, protegido por uma grossa camada, como uma casca de pedra que recobria todo o seu corpo, mas que na região do peito era mais espessa.
            Todo o seu rosto estava despido da casca de pedra e ele via, finalmente, sua verdadeira e única face. Seu corpo também fora lavado pelas lágrimas e estava inteiramente livre dos muros de pedra que o protegiam e mantinham o mundo afastado dele, que o fazia ficar afastado do mundo. Viu-se de corpo inteiro, transformado não mais em uma pedra, mas em um homem de carne e osso. Percebeu, no entanto, que nem todo o seu corpo ficara livre da couraça de pedra: havia uma parte, no peito, que continuava pedra, uma pedra tão dura que ele, sozinho, não conseguia quebrar e que, talvez, quisesse mantê-la do jeito que estava: feito pedra, pois pedra dói menos, sente menos, e foi justamente por que, certa vez, sentiu, que tinha se tornado pedra por inteiro, e pedra por inteiro ele não desejava voltar a ser.