domingo, 30 de março de 2014

Doce gabito

Fala-se que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Há os que dizem que um escritor contemporâneo não “acerta a mão duas vezes seguidas ao escrever romances”! pois eis que raios caíram duas vezes no mesmo lugar e um escritor brasileiro escreveu não só dois bons livros, mas dois livros magníficos, marcantes, poéticos e de delicadezas impressionantes, capazes de envolver o leitor, embalando-o e fazendo com que ele se envolva com a história e se identifique prontamente com os personagem. Que autor é esse? Francisco Azevedo! E que livros são esses? O Arroz de Palma, o primeiro, e Doce Gabito o segundo
            Fico me lamentando e comento com todas as pessoas com quem converso, que demorei muito a descobrir Francisco Azevedo e seu estupendo Arroz de Palma. Um livro lançado em 2009, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e que só recentemente, no ano passado, foi que eu tive o imenso prazer de lê-lo. Por que demorei tanto a lê-lo? Nem eu mesmo sei. São tantos os livros a ler, tantos autores para conhecer, que, confesso nunca ter prestado tanta atenção aquele livro de capa tão delicada e singela e que nunca chegava em grande quantidade à livraria em que trabalho, mas que, mesmo assim, mesmo sem tanta divulgação, mesmo sem fazer barulho, era sempre bem vendido e que recebia elogios “rasgados” daqueles que o saborearam. Aconteceu que, na metade de 2013, aquele livro se jogou em meus braços e segurando meu rosto, gritou: “leia-me agora ou arrependa-se para sempre!”. Eu, diante de tais argumentos, nada pude fazer além de leva-lo para casa e iniciar, naquela mesma noite, sua leitura. E que livro! A cada parágrafo, uma poesia. Eu ficava entre querer devorá-lo em uma única noite ou prolongar o imenso prazer de sua leitura por dias a fio, saboreando, grão a grão de suas palavras.
            Ao fechar o livro, tendo lido o último ponto de O Arroz de Palma, continuei por longos dias com aquela história ecoando em minha cabeça, tendo por companhia aqueles tão cativantes personagens com os quais tanto me identifiquei. Com o passar dos dias, comecei a me sentir órfão, pois nada do que lia encontrava aquela poeticidade, aquela delicadeza das palavras de Francisco Azevedo. Encontrei, sim, muito bons livros, que marcaram o meu ano de leitura, mas nenhum tanto quanto aquele Arroz...
            “Livro vai, livro vem...” e acontece de eu, por acaso, resolver fuçar na internet (no facebook, para ser mais exato) e encontrar, entre milhões Franciscos e entre tantos Azevedos, o Francisco Azevedo que, com seu livro, fez eu me sentir órfão por meses após a leitura do incomparável O Arroz de Palma. Conversa vai, conversa vem, apresentações feitas, elogios também, acabo descobrindo que ele lançou outro livro de peculiar título, Doce Gabito. Como assim?! Ele tem um segundo livro e eu não sabia! Mas o livro, infelizmente, não tinha unzinho exemplar sequer na livraria em que trabalho. Relatei isso ao autor, comentei de meu “desespero” (dramático eu? Imagina!), e ele, se compadecendo de minha situação, mandou-me um exemplar do livro. Eu aceitei, óbvio, o presente, mas com uma condição: que o livro viesse autografado. Ele não titubeou, e mandou-me o exemplar do raro livro.
            Iniciei a leitura de Doce Gabito e senti, de cara, o mesmo impacto da leitura do livro anterior do autor. A mesma poeticidade, a mesma linguagem plástica, a mesma forma inigualável e até o mesmo eixo temático, família. Isso tudo sem contar as referências literárias e as “coincidências” na história da protagonista/ narradora, Gabriela Garcia Marques (isso mesmo! é este o nome dela), com a de seu homônimo, o famoso e laureado escritor colombiano, sem contar a presença constante de seu amigo, que sempre vem lhe visitar em sonhos (normalmente, mas que vez por outra aparece em plena luz do dia e dá o ar da graça quando ela está com os olhos bem abertos), que é presença constante na história, tão real quanto os demais personagens, Gabito (nada mais nada menos do que o próprio escritor nobel de literatura de 1982!).
            É inevitável se fazer comparações entre os dois livros, principalmente quando o primeiro é tão marcante, e talvez algumas pessoas ao lerem o segundo livro de Azevedo o achem “abaixo da expectativa” simplesmente por ter ficado “diferente” do outro, mesmo tendo tanto em comum. O Doce Gabito é, em muitos aspectos, inclusive, uma obra mais madura que O Arroz de Palma. No deparamos, nele, com uma maior gana de personagens, complexos e bem desenvolvidos, que pulsam de vida em todos os capítulos, pelos quais torcemos, que nos deixam curiosos sobre como vai terminar a história, nos obrigando a virar página atrás de página para chegar logo ao final. A condução da história continua “não linear”, com a personagem-narradora nos conduzindo ao seu bel prazer numa viagem através do tempo, nos contando suas histórias, suas lembranças, nos levando pela mão.
            Gabriela tem um avô espetacular e cuidadoso, tanto que numa das primeiras cenas em que nos deparamos com os dois juntos, o encontramos reparando nas costas da neta, verificando se suas asas estão crescendo retas, corretas, nos seus devidos lugares. Quando ele termina o minucioso exame, que diz a ela que está tudo bem com suas asas, ela abre um imenso sorriso, satisfeita. Moram apenas os dois num simples casebre localizado no alto do morro Santa Marta. Se faltam maiores contato com “o mundo exterior”, se a menina não vai a escola, ficando a encargo do avô a sua instrução, não lhe faltam boas lembranças dessa fase de sua vida e pessoas marcante em sua vida. São os momentos que passa com o avô os mais ternos e repletos de fantasia (incentivados e cultivados por ele) de sua vida. Mas toda esta vida, fantasia, é ameaçada, e quando os dois estão prestes a fugir do alto do morro, acontece uma fatalidade, tendo a vida de Vovô Gregório ceifada tão bruscamente, e a de Gabriela não o foi graças a intervenção de um misterioso homem moreno de fartos bigodes, que a salva.
            A vida da menina muda bruscamente quando passa a viver no casarão da tia, com quem nenhum terno contato tivera até então. É Letícia uma mulher de personalidade forte, dominadora, a dona da última palavra, que administra um conceituado e respeitado prostíbulo na cidade. Gabriela sente falta do aconchego do abraço gostoso do avô e dos amigos que tinha no morro, local a qual é terminantemente proibida de voltar pela tia, mas encontra em Verônica, a amiga que é como uma válvula de escape naquele novo mundo em que se viu subitamente inserida. O único ponto de discórdia entre as duas se dá na “questão Gabito”, pois Verônica se nega terminantemente a acreditar nas palavras e amizade de Gabriela com tão singular homem, ao qual ela nunca, Verônica, nunca viu!
            A harmonia e rotina na vida de Gabriela é quebrada subitamente quando, prestes a completar 15 anos, sua tia lhe faz um pedido-cobrança: compensar-lhe todos os anos que cuidou dela, começando a trabalhar para ela. Chocante e difícil momento na vida, Gabriela reluta em vender a sua virgindade, a tornar-se puta de homem, mas acaba por aceitar sob determinadas condições, condições estas que vão colocar em choque e gerar desavença entre sobrinha e tia, mas que acaba sendo contornada.
            Gabriela encontra, nos braços de José Aureliano (sempre as coincidências nos nomes e orbitando em toda a história!), algo que não esperava de um alguém que lhe compra os prazeres do corpo, mas até mesmo as fantasias de uma paixão. Descobre e amadurece muito como pessoa, e quando chega a maioridade sua vida dá uma guinada, e ela se vê não mais como uma menina, mas como uma mulher, que, no entanto, nunca deixou para trás aquela fantasia e que tem, sempre em si, aquela preocupação de saber se suas asas estão crescendo retas, no lugar que deveriam.
            Livro de paixões, inocência e fantasia; de amizades, descobertas e decepções. Doce Gabito tem na célula-família um ponto central na história, mas na vida de Gabriela e na sua doce relação com seu homônimo o fio condutor que vai nos conduzindo naquela formidável teia de histórias, personagens e de coincidências entrelaçadas. Livro gostoso e aconchegante como um abraço em que real e imaginário se entrecruzam. Livro com que nos identificamos não só com as personagens, situações e histórias, mas com o doce sabor das lembranças e com a fantasia que ele desperta. Livro humano acima de tudo, principalmente quando ele nos leva a pensar e a refletir acerca de nossas asas, nos levando a perguntar se elas realmente estão crescendo no lugar certo...

domingo, 23 de março de 2014

O abrir das asas

Ele persistiu, acreditou em si, em suas próprias forças, em sua vontade e em sua determinação, e, lá do alto, satisfeito, viu o tamanho do salto que dera.
 
Sentiu medo, um frio na barriga, sentiu-se impotente e esteve para desistir antes de dar aquele passo. Fechou os olhos e olhou para os próprios pés. Sentia-se tão seguro onde e como estava, e seria uma insensatez largar tudo aquilo por conta de uma simples aventura que iria durar não mais que alguns míseros segundos. Muito mais sensato seria ficar como e onde estava! Mas não! Ele não ouviu a voz interior que lhe dizia para ficar, para não olhar para frente, mas sim para os próprios pés, onde encontrava a segurança em que com tanta ânsia se agarrava.
            Ele titubeou e olhou para trás, para a segurança, e depois para frente, para o horizonte de desconhecido que teria diante de si se ousasse dar mais um passo. Fechou os olhos e respirou fundo duas ou três vezes. Não sabia o que fazer. Seu coração, sua alma, lhe dizia para dar mais aquele passo que lhe levaria ao desconhecido, enquanto seus pés lhe diziam para permanecer como estava.
            Via diante de si tantos daqueles loucos que ousaram dar aquele curto e decisivo passo, felizes, mergulhando no ar, cantando em louvor a louca liberdade, e se perguntou se ele estava pronto para aquela loucura, se seria realmente capaz de voar, se sua voz teria força igual a daqueles que sentiam aquela liberdade. Enfrentava aquele dilema decisivo em sua vida: a loucura da liberdade inebriante do ar ou a segurança e firmeza de ter eternamente algo seguro sob os pés?
            Deixou que sua alma decidisse, que seu coração falasse mais alto, e, com os olhos, fechados respirou fundo e se deixou largar no imenso vazio, dando aquele tão curto e grande passo. Caiu livremente por uma curta fração de segundos, mas logo abriu as asas e começou a batê-la freneticamente, de maneira desajeitada e, ainda com os olhos fechados, com medo, começou a sentir o nada debaixo dos pés, e tudo que havia ao seu redor.
            Abriu lentamente os olhos para ver a liberdade que o seu corpo já sentia em toda a plenitude. Perdeu a respiração quando olhou para baixo e não viu nada além do chão, lá embaixo, tão longe, e para trás, quando viu a árvore de onde saltara, tão distante. Feliz com seu feito, abriu a boca num imenso sorriso de júbilo e de sua garganta, de uma gargalhada soou um canção de louvor à liberdade, à nova vida que a partir daquele momento teria diante de si.
            Batia as asas agora com desenvoltura e dava voos rasantes, gozando de sua recém-adquirida liberdade, indo de um lado para o outro dando pequenos-e-grandes saltos. Pousou em uma árvore e lá do alto da copa olhou para aquela de onde saltara. Reviu, reviveu durante alguns instantes, todas as indecisões por que passara, rindo de seu próprio medo. Se não tivesse enfrentado seus medos, se não tivesse acreditado em si, se não tivesse persistido, não estaria, naquele momento, vendo em toda a sua extensão a beleza que tinha diante de si, todo o céu. Abriu novamente as asas, dando um salto-mergulho em direção à árvore de onde viera, não para lá ficar, mas sim para saber de onde viera, para saber para onde podia voltar e pousar entre um voo e outro.

domingo, 16 de março de 2014

Espírito Livreiro

Livreiro possui um espírito aventureiro, descobridor, tal qual aqueles personagens tão conhecidos de tantos livros. O livreiro busca incessantemente tesouros escondidos, perdidos naquela imensidão de prateleiras ou esquecido no canto de baixo de uma mesa.
            Livreiro não é vendedor, apesar de constar tal profissão assinalada em sua Carteira de Trabalho, pois seu trabalho não é vender, mas sim orientar, encantar, surpreender e cativar não ao cliente, mas sim ao leitor sedento de uma boa indicação de leitura. Livreiro também não é vendedor por que não vende produto algum, mas sim Livros, e o que um livro mantém aprisionado em suas páginas em branco e letras impressas não pode ser mensurado e comparado a produto algum.
            Livreiro é um completo e confesso apaixonado, e transparece a sua paixão em tudo, e é facilmente reconhecido em suas palavras, atos e gestos, pois tem tatuado não na pele, mas em sua alma, a sua paixão.
            Livreiro nunca é um alguém comum, pois tem “gostos e hábitos estranhos”, como ler em ônibus, nas filas, enquanto espera seu número em um painel eletrônico; como sentir o cheiro de livros com quem cheira a primeira flor a desabrochar na primavera; como ouvir as vozes dos personagens do livro que está lendo; como ser mais reservado e muitas vezes mais calado, silencioso e quieto, embora estas características em nada tem a ver com sua mente e alma em eterna ebulição, eternamente barulhenta que grita a tal ponto de lhe estourar os ouvidos.
            Livreiro não é livreiro apenas em seu ambiente de trabalho, pois carrega consigo sua paixão onde quer que vá, e sua paixão transcende a todas as paredes aonde venha a estar encarcerado.
            Livreiro não vive apenas uma vida, mas sim mil e uma ao mesmo tempo. Reconhece em leitores os personagens e situações vibrantes dos livros que leu e os cumprimenta como se fossem íntimos de longa data, intimidade esta que só um grande livro pode propiciar.
            Livreiro conversa sobre livros com intimidade e paixão apaixonantes, que faz com que aquele que ouve as suas brotantes palavras tão sinceras, vindas do âmago de sua alma, sendo reflexos da vida vivida nas páginas daquele cativante e formidável livro, entrem pelos ouvidos do leitor e se espalhem por sua corrente sanguínea, acelere os seus batimentos cardíacos e faça com que ele entre na história antes mesmo de iniciar sua leitura, só em ouvir as palavras do loucamente apaixonado livreiro.
            Na casa de um Livreiro não há livros guardados, mas sim vidas que brotam e voejam por todos os ambientes de seu recinto sempre que um alguém abre algum daqueles objetos mágicos e dá asas e vida aos personagens de cada uma daquelas histórias contidas naquelas centenas, quiçá milhares, de livros.
            Um Livreiro nunca poderá ser definido com poucas e imprecisas palavras, por mais hábil que seja aquele que tenta defini-lo, mas ele é claramente percebido em meio a uma multidão, principalmente pelo sorriso quando se encontra em seu habitat natural, dentro de uma biblioteca ou livraria, ou simplesmente entre livros ou pessoa cujas almas vibram em consonância com a sua, que compartilham a mesma paixão pelos mesmos livros.

domingo, 9 de março de 2014

O menino e a biblioteca

Ninguém sabia o porquê de ele ficar trancado naquele cômodo da casa o dia todo. Viam aquele lugar estranho na casa como um ambiente qualquer, onde um velho tio tinha juntado uma gigantesca coleção de objetos velhos a que as pessoas chamavam de livros.
Como ninguém sabia o que fazer com eles nem se interessa por descobrir e por se tratar de uma herança, por uma questão de respeito à pessoa que os tinha deixado, guardaram-nos num cômodo da casa, fecharam a porta e esqueceram que tal lugar e tais objetos existiam. Ninguém pisava lá, ninguém sequer abria aquela porta, até que um sobrinho distante veio passar na casa da família alguns dias. Explorando a casa, andando por corredores longos, mal iluminados e silenciosos, ele chegou ao final daquele onde havia uma porta fechada, mas que ele mal se aproximou já foi se abrindo, dando-lhe passagem, mostrando um cômodo repleto de luzes e sons silenciosos. Prendeu a respiração, pois nunca tinha visto tantos livros juntos, e olhou para trás, para ver se ninguém o repreendia por ter aberto aquela porta que jazia fechada há tanto tempo. Com medo, não sabia se podia entrar ali, mas que mal poderia haver em entrar na biblioteca, lugar este mágico no qual, infelizmente, nenhuma pessoa entrava?! Deu um primeiro passo, passando pelo umbral da porta, depois deu mais outro, outro e outro, até que se viu ao pé da estante. Levantou lentamente o braço, abriu a mão e tocou alguns daqueles livros, que pareciam sedentos para serem abertos, lidos, saboreados e devidamente apreciados. Fechou os olhos e deixou seus dedos correrem livremente, passeando, tocando, sentindo as capas daqueles livros, até que seus dedos se detiveram em um livro. Lentamente ele abriu os olhos e sorriu ao ver que livro sua alma-de-leitor tinha escolhido. Pegou o livro, retirando-o da estante, com todo o cuidado do mundo e, abraçado a ele, sabendo que tinha em seus braços um preciosíssimo tesouro, foi até um canto da biblioteca reservado à leitura e devorou, saboreou aquela obra de arte feita de folhas, tinta e alma com uma ânsia que até então desconhecia. Dia após dia, ele passou a passar por aquela porta e, como em forma de um ritual, de uma escolha feita por sua alma, fechava os olhos e deixava suas mãos passearem livremente, até que se detivessem, escolhessem um livro, e aquele seria o que ele iria ler naquele dia.
Como era um menino no qual não prestavam atenção, de hábitos solitários por natureza, passou a frequentar a biblioteca da casa sem que se dessem conta. Passava longas horas entretido ali, no meio daquelas luzes, ouvindo tantas altas-sussurrantes vozes, em companhia de tantos autores e personagens. Pouco a pouco passou a ficar mais tempo entre os livros do que entre as pessoas, e estas nem se davam conta disso, achando aquele afastamento normal vindo de um menino solitário.
Deveria ter ficado apenas alguns dias, mas foi se esquecendo por ali, foi se fundindo à biblioteca de tal forma que acabou ficando sem que as pessoas da família se apercebessem de sua presença na casa. Fazia rapidamente as refeições com os membros da família e nos intervalos entre o café da manhã e o almoço, entre o almoço e a janta, ia se perder e se encontrar sendo embalado pelas melífluas palavras de um autor na companhia de mil e um personagens.
Ele foi mudando, foi crescendo, foi adquirindo uma nova vida e seu olhar foi ficando mais aguçado, seus olhos vendo mais do que apenas aquilo que se mostrava. Começou a falar de maneira diferente, de forma clara e precisa. Quando isso aconteceu, as pessoas começaram a estranhar e certa vez um alguém o seguiu, para saber onde ele ia e com quem estava nos momentos em que não era em companhia de pessoas. Tal não foi o seu espanto ao constatar que o menino entrava e ficava longas horas perdidos dentro do “cômodo esquecido da casa” que era a biblioteca. Correu para dizer aos outros.
- Deixe pra lá! Daqui a pouco ele esquece que existe uma biblioteca aqui – disse certa pessoa, para acalmar os ânimos dos que, em polvorosa, queriam que se tomasse alguma atitude para se por fim aquela atitude sediciosa do menino.
Mas o menino não se esqueceu, e, pelo contrário, começou a, ao passar dos dias, ficar mais e mais tempo na biblioteca, entre os livros, e aquilo gerou certa preocupação por parte das pessoas. Uma ou outra tentava lhe oferecer distrações, chamando-o para sair, para passear, ao que o menino respondia com um educado “estou ocupado” no início, e depois com um simples e definitivo “não” quando a pessoa muito insistia, e entrava naquela biblioteca e se esquecia do mundo exterior, ficando longas e longas horas entretido nas páginas daquele livro, viajando e saindo do mundo sem sair do lugar, deixando que sua alma vagasse livremente por mil e um espaços.
As pessoas, no entanto, consideravam aquela atitude estranha, inexplicável, e passaram a insistir mais enfaticamente, e certa vez uma a perguntou:
- Por que você lê tanto?
O menino, muito educadamente, olhou a pessoa, um amigo de um membro da família que viera ali com o intuito de “lhe salvar”, e respondeu:
- E tu, por que tanto respiras? – e fechou a porta, trancando-se na biblioteca.
Ao ouvirem aquilo, entenderam a resposta-pergunta do menino não como um ato de arrogância e grosseria, mas como palavras sábias, mesmo vindo de um alguém tão jovem.
No dia seguinte, quando o menino abriu a porta da biblioteca e entrou, um primo seu, curioso e de maneira tímida, perguntou se também podia entrar. Queria saber o que aquele lugar tinha de tão especial, o que tanto escondiam aqueles objetos chamados livros. Foi este segundo menino mais um a ser fisgado pelos livros, mais um a ser motivo de preocupação na família!
E quanto mais pessoas ficavam preocupadas, mais curiosas ficavam por descobrir e assim acabavam se deixando, movidas pela curiosidade, passar por aquela porta, se deixavam andar livremente por entre as estantes de livros e que suas almas escolhessem que livro abrir naquela manhã.
Pouco a pouco a biblioteca, que era um lugar esquecido, o mais distante da casa, foi se tornando o coração, pulsante de vidas mil, o ambiente mais frequentado, onde a porta nunca estava fechada, onde sempre havia um alguém a ler, seja no silêncio e no frio da madrugada, seja em pleno calor meio-dia.
As pessoas, então, passaram, também, a entender que livro não é só um objeto que resguarda, escondido entre seu seio, nas suas páginas, protegido por uma capa, um emaranhado de palavras, que deve ficar trancafiado, fechado, exposto numa estante e fechado atrás de uma porta de biblioteca, mas sim algo vivo, que pulsa, que tem alma própria, e que esta clama, grita, por se libertar, para viver, mas que isto só é possível graças e com a intervenção do leitor. Livro é algo repleto de significados e de transcende a todas as tentativas de definições e significações, pois só quem sabe o que ele realmente significa é aquele que, meio que por um acaso, se deixou levar por uma curiosidade e abriu, aleatoriamente um livro e leu a primeira palavra que lhe caiu nos olhos.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Emergência 911 no mundo moderno



Aquele tinha sido um dia tranquilo na central de ligações de emergência e a telefonista já começava a arrumar suas coisas quando o telefone tocou. Ela sabia, de alguma forma, da gravidade da situação, e atendeu à ligação no segundo toque. Do outro lado da linha, um jovem desesperado.
            - Socorro... Socorro... Eu preciso de ajuda. Ele não está respondendo e me parece morto. Preciso de ajuda, rápido.
            A telefonista, percebendo o desespero na voz do outro lado da linha, tenta acalmá-lo, ao mesmo tempo que procura descobrir o que se passou exatamente para acionar uma equipe de atendimento móvel de urgência.
            - Senhor, o que aconteceu? O senhor está em frente à vítima?
            - Sim, sim... ele está aqui à minha frente e estou tentando reanimá-lo, mas ele não esboça qualquer reação. Acho que ele morreu.
            - O coração dele está batendo? O senhor consegue verificar isso, por favor?
            - Não. O coração dele está parado há quase dois minutos. Já tentei de tudo para reanimá-lo, mas foi tudo em vão. Cheguei até a tentar dar um choque nele, mas de nada adiantou.
            A situação então era realmente muito grave. A telefonista, desesperada, tem que agir rápido e acionar uma equipe. Verifica em seu monitor a localização das equipes para poder destacar a que esteja mais perto para fazer o primeiro-atendimento e remoção da vítima.
            - Onde o senhor está? Pode me dar o seu endereço para eu poder destacar uma equipe?
            O outro, já chorando, fala o que aconteceu.
- Estava tudo tão bem... Eu só sai dois minutos para ir beber água... quando voltei, que me sentei de volta ele... ele me disse algo em forma de mensagem e de repente... apagou. Tentei reanimá-lo até com choque, realizei todos os procedimentos recomendados em situações como essas, de emergência, e nada... Ele sequer abre os olhos. O coração dele parou... parou... E foi tudo tão de repente. Talvez se eu não tivesse saído de seu lado...
- Senhor, por favor, eu preciso de seu endereço para destacar uma equipe para ajudá-lo, rápido. Cada segundo conta numa hora dessas.
Ele, desesperado, verdadeiramente dopado por sua dor, não escuta o que a telefonista falou.
- E ele não estava fazendo nada, nenhum esforço. Nós não estávamos jogando nem nada, pois já haviam me dito para não jogarmos, pois faria mal a ele. Ele só estava baixando umas coisas, quando de repente...
Ela já estava acostumada à situações como aquelas de emergência e mesmo com as palavras parecendo desconexas e sem sentido, foi agindo.
- Preciso, senhor, rápido, saber onde o senhor a vítima estão para destacar uma equipe para ajudá-los – ela agora falou de forma brusca, quase gritando ao telefone, para chamar o outro à razão.
- Estou em minha casa...
- O endereço, senhor... Eu preciso do endereço para mandar a equipe do atendimento de urgência, ambulância e dos paramédicos.
- Eu preciso de um técnico, com urgência... ele está morto. Ainda posso sentir o calor do corpo dele, mas ele está ficando cada vez mais frio – e começou a chorar.
- Tem mais alguém com o senhor?
- Não. Estou sozinho, aqui no quarto, com ele, morto, bem aqui, ao alcance de minha mão. Estamos só nós dois.
- Tenho que mandar os paramédicos com urgência, senhor, pois ainda podemos salvá-lo. Ainda há tempo. Agora, por favor, me diga o endereço para eu mandar a equipe.
- Não é preciso toda uma equipe. Talvez só um bom técnico possa salvá-lo.
Silêncio dos dois lados da linha, que só era quebrado pelos soluços do jovem desesperado, necessitando tanto de ajuda.
A telefonista estava começando a ficar desesperada, apesar de todo o seu preparo para lidar em situações como aquela. Sentia-se com as mãos atadas, impotente, por ver que há alguém precisando desesperadamente de ajuda, tendo ela o “poder” de destacar uma equipe móvel de urgência, mas sem conseguir extrair do desesperado do outro lado da linha a informação de para onde mandar a equipe que poderia salvar uma vida.
- Um técnico... um técnico... Eu preciso de um técnico, com urgência. Só um bom técnico pode salvá-lo, pode ressuscitá-lo.
- Senhor, estou com equipes prontas, a postos, com paramédicos e enfermeiros prontos para ajudar seu amigo, mas para mandá-los, eu preciso saber onde o senhor está.
- Ele não é só meu amigo. É meu único amigo, aquele que me faz companhia todas as horas, até nas madrugadas...
O tempo passando e a telefonista mais e mais desesperada, sem conseguir saber do maldito endereço...
- Ele estava tão bem há cinco minutos. Nunca teve problema algum. E de repente, apaga, sem mais nem menos, e agora está aqui, morto.
Pelo tempo que se passou, dada a gravidade da situação, a telefonista sabia que não havia mais nada a fazer. Àquela hora, muito provavelmente, a vítima já estava realmente morta e não havia qualquer possibilidade de reanimação com eletrochoques, massagens cardíacas ou o que quer que fosse. Mas precisava, mesmo assim, tentar.
- Ele... eu já o tinha há tanto tempo... Ele nunca apresentou qualquer defeito, problema, e sempre esteve comigo nas horas mais difíceis, quando eu estava mais precisando, quando estava mais sozinho. E agora, o que vai ser de mim? O que vai ser de minha vida, agora, que ele está morto?
Já cansada, desesperada, a telefonista, sentindo como se tivesse deixado de salvar um alguém, resolve fazer uma última tentativa.
- Qual era o nome dele?
- Ele... Ele não tinha necessariamente um nome...
- Ainda tem algo que eu possa fazer, senhor?
- Um técnico, por favor. Mande um técnico. Talvez um técnico possa, ainda, salvá-lo, devolver-lhe a vida.
- O senhor, por acaso, quer dizer um médico?
- Não. Falo em técnico mesmo! Afinal de contas, o que um médico poderia fazer numa situação dessas.
- Talvez um médico...
- Não. Um médico não, um bom técnico, apenas, pode salvar o meu computador.
- O seu O QUÊ?
- O meu computador! Ora, o que mais poderia ser?!
A telefonista, respirando o mais devagar que podia, foi deixando o gancho telefone cair, cortando a linha.
- Alô? Alô? Você ainda está aí? Socorro... Eu preciso de ajuda. Meu computador está morto. Eu não consigo ligá-lo. Alô? ALÔ? Você ainda está aí? Você ainda está aí? Socorro... SOCORRO...