quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Irmão-mais-velho


Há uma época de nossa vida em que achamos o nosso irmão-mais-velho a pessoa mais chata do mundo! Isso tudo por que, só por ser ele o mais-velho, e nós, o mais-novo, recebe a incumbência de ficar de olho em nós, coitados, quando os olhos de nossos pais não estão presentes. Ele, chato como é, na nossa concepção da época, assume tal tarefa com uma rigidez militar, e toma conta mesmo, vigia cada um de nossos passos para que, quando damos um passo em falso (que em nossa opinião da época não foi em “tão falso assim!”), ele vá imediatamente falar para nosso pai (ou mãe) que fizemos algo de errado, se fomos onde não deveríamos ir, se falamos o que não deveríamos falar, se começamos a implicar com determinado amigo ou mesmo que nos metemos numa pequena confusão ou briga-de-menino. Quando isso acontece, que ele nos dedura, lançamos, em sua direção, um olhar psicopata-assassino que ele entende e nos devolve com um do tipo “eu bem que avisei (e avisou mesmo) que você não deveria fazer isso”, ou um do tipo “estou responsável por você, portanto, não crie banque o menino-teimoso e não faça nada de errado”. E o pior é quando não corre para falar aos nossos pais de nosso “deslize”, mas resolve, ele mesmo, nos chamar a atenção e nos pôr para dentro de casa. Nessas circunstâncias, mesmo a contragosto, mesmo desejando jogar-lhe na cara um “você não é meu pai e não manda em mim!”, “abaixamos a crista” e obedecemos não a sua ordem, mas o seu conselho, mesmo assim.
            O tempo passa, e nós, os mais-novos, já sendo adolescentes, mesmo com todo aquele espírito de rebeldia e de natural desejo-de-independência, começamos a mudar a opinião sobre o irmão-mais-velho. Ele não é mais o chato de outra época, de alguns anos atrás, mas, ainda assim, nós ainda insistimos, só para nós mesmos, em rotulá-lo, injustamente, como tal. Ele não é mais o vigilante, o que vai nos enredar aos nossos pais, o que vai nos dizer que é hora de entrar ou que não devemos fazer isso ou aquilo, mesmo porque, nessa época, nós mesmos já sabemos distinguir (na nossa opinião) o que é certo e o que é o errado, mas, mesmo assim, continua a nos observar atentamente, dessa vez com um olhar mais brando, não militar como de outrora, mas com um olhar de cuidadoso observador. Fingimos, por vezes, que não, mas lhe damos ouvidos quando ele, tomando o seu lugar e a responsabilidade de direito, vem nos dirigir uma palavra, um conselho de um alguém já amadurecido, calejado pela vida, que só quer o nosso bem, que quer nos guiar pelo caminho certo. Nós, rebeldes, por vezes, como somos, só de pirraça, fazemos questão de mostrar que faremos as coisas de nosso jeito, mas que, tão logo ele vira a cara, desapontado por nós “não lhe termos dado ouvidos”, que não está mais olhando (só para não lhe dar o gostinho!), nos pomos no mais completo silêncio e a pensar em cada palavra dele, e vemos que ele tem razão, e resolvemos seguir passo a passo o que e como ele aconselhou a fazermos.
            Na idade adulta, já com todo o peso, responsabilidade, amadurecimento e justiça que tal idade traz, ao olhar para trás, que revemos e revivemos cada momento, cada lembrança que temos de nosso irmão-mais-velho, percebemos o quão injusto fomos com ele no passado, principalmente na infância. Notamos que, olhando para dentro de nós, temos mais dele do que ele jamais imaginaria. Guardamos bem mais doces lembranças dele do que lembranças chatas.
            Lembramos da felicidade que era o dia em que ele resolvia limpar suas coisas, que ia rever o que não mais queria, e que nos dava aquele objeto-de-desejo que era determinada coisa que olhávamos com olhos tão cobiçosos por tanto tempo, e quando recebemos tão presente, o pegamos nas mãos como se fosse uma o mais precioso e delicado cristal do mundo e passamos dias sem fim sem larga-lo. Lembramos com especial prazer dos brinquedos dele, que ele cuidou com tanto zelo durante tantos anos, e do júbilo que foi o dia em que os recebemos como herança que ele nos lega, em que, mentalmente, juramos fazer por onde tê-los merecido por herdá-los, que juramos zelar por eles da mesma forma que ele zelou para que a próxima geração possa ter o prazer de brincar com aqueles brinquedos que são tão preciosos e cheios de histórias. Ficamos com o coração despedaçado quando vemos a geração seguinte (normalmente os primeiro sobrinho) destruir os brinquedos que duraram tantos anos, que passaram tantos anos para chegar até eles, serem destruídos assim, em fração de segundos. Ficamos com vontade de esganá-los, não por ele ter destruído um brinquedo que foi nosso, mas por ter acabado com algo que foi de nosso irmão-mais-velho.
            O irmão-mais-velho é aquele de quem herdamos as coisas, e não apenas as materiais, como os brinquedos, que foram destruídos pelo primeiro sobrinho, mas as coisas imensuráveis, imateriais. Herdamos gostos, como o pela leitura dos quadrinhos, que começou a ser adquirido quando acompanhamos ele e nosso pai a banca de jornais, e que por ver o patriarca comprando uma revista para o primogênito exigimos o nosso direito de ganhar, também, a nossa, mesmo que a gente não as leia. Mas só em ir, mensalmente, à banca, acabamos por, aos poucos, ir olhando com outros olhos para as revistinhas e começamos a tomar o primeiro gosto pela leitura, seguindo os passos do primogênito.
            Como legítimos herdeiros, herdamos, também, o gosto pela leitura, seguindo os mesmos passos dele, mesmo por que são dele os primeiros livros que pegamos de empréstimo (e alguns a gente até esquece, propositalmente, por vezes, de devolver, torcendo para que ele se esqueça do livro e nós possamos herdar o nosso primeiro livro). Herdamos, também, os gostos pelas músicas sem que a gente perceba. Começamos a gostar das mesmas músicas que ele, a ter os mesmos ídolos, a ter a mesma rilha sonora de nossa vida, mesmo sem saber, ainda, quem são aquelas pessoas que tocam aquelas músicas e quais os nomes dos artistas e das bandas, mesmo sem saber o que quer dizer a letra daquela canção.
            O irmão-mais-velho é aquele alguém que é uma espécie de banco a quem recorremos, principalmente na adolescência, quando ainda não trabalhamos e os vemos, já, ganhar seu próprio dinheiro. Chegamos meio timidamente e pedimos dinheiro emprestado (que nunca pagamos) para ir ao cinema, fazer um lanche ou para sair com a nossa primeira namorada.
            Somos eternamente gratos ao irmão-mais-velho por ter sido ele o que nos levou ao primeiro show, que nos levou para passar o primeiro carnaval longe dos pais, numa casa de praia com um monte de amigos, justamente o mais legal carnaval de nossa vida.
            O irmão-mais-velho é aquele que nos orienta a seguir os passos dele, pois ele já sabe os atalhos e, por querer tanto o nosso bem, nos conduz tão suavemente, nos dando as opções, não nos influenciando, mas nos orientando pelo que ele julga (e sabe) ser o melhor.
            É ele um dos que mais vibra quando passamos no vestibular, que nos ensina onde ir no dia de fazer a matrícula na universidade, que se preocupa em saber se estamos de posse de toda a documentação, que quer saber como foi o primeiro dia de aula, que incentiva na árdua procura pelo primeiro estágio e que liga quando saímos de nossa primeira entrevista de emprego e que vibra e quer comemorar quando conseguimos o primeiro emprego.
            É o irmão-mais-velho aquele que, no dia de nosso aniversário, é dos primeiros a ligar e faz questão de querer sair para almoçar ou jantar fora, para comemorar, afinal de contas, “data tão especial não pode passar em branco”.
            Olhando para trás, vemos que o irmão-mais-velho não é só um irmão, um alguém com quem temos um laço sanguíneo, com quem compartilhamos o mesmo sobrenome e o mesmo quarto durante grande parte de nossa vida, mas um alguém a quem muito respeitamos, amamos. Temos mais em nossa alma do irmão-mais-velho do que nos damos conta e do que ele mesmo é capaz de perceber. O irmão-mais-velho é e significa tudo isso e muito mais. O irmão-mais-velho é um alguém especial, mais-que-único em nossa vida, um alguém que seguimos os passos, a quem queremos ser igual quando crescermos.

sábado, 23 de agosto de 2014

A leitora

Eu sou aquele tipo de pessoa estranha, dessas que ao entrar num ônibus olha os assentos ocupados e vejo todas aquelas pessoas, cada uma ocupada com seus computadores de mão (vulgos smartphones!), jogando algum joguinho sem graça, conversando no WhatsApp ou mandando e recebendo mensagens SMS, entretidos em algum aplicativo baixado na noite anterior ou simplesmente conversando alto e fazendo questão que todo mundo que está no ônibus ouça tudo; vejo, também, pessoas distraídas, ouvindo suas músicas, e algumas até mexendo os dedos ou batendo suavemente o pé na cadência da música; vejo também pessoas distraídas, olhando a paisagem ou pensando em como aquele dia tende a ser longo e cansativo; vez por outra tem aqueles que estão conversando alto e incomodam a metade do ônibus; e de vez em quando antes mesmo ouço antes de ver um daqueles desprezíveis DJs de ônibus, ouvindo suas músicas de qualidade duvidosa e incomodando o ônibus inteiro, e sempre que vejo (digo, ouço) tal ser, minha vontade é de pedir parada e descer imediatamente.
            Pois bem, eu não me enquadro em nenhuma dessas categorias (se bem que de vez em quando eu ouço minha música – com fones de ouvido, óbvio), e ao entrar no ônibus, ao me deparar com tão familiares figuras, busco com os olhos um lugar onde possa me sentar (normalmente à janela, no lado do sol – não me pergunte por que opto por me sentar no lado do sol). Devidamente sentado, sentindo-me confortável (por vezes nem tão confortável assim), abro minha mochila e tiro de dentro dela um objeto estranho, um livro, e ao fazer isso muitas pessoas me olham com certa estranheza, como se eu fosse um ser de outro mundo e portando um objeto deveras perigoso, talvez desconhecido (pelo menos no ambiente de um transporte público coletivo) para a maioria daquelas pessoas.
            Um dia desses tudo me parecia igual a todos os dias. Entrei no ônibus, procurei com os olhos um assento e me dirigi para lá. Infelizmente não era na janela, mas pelo menos era do lado do sol (!). Sentei-me e ao começar a abrir a mochila, olhei para o lado e vi que havia um elemento estranho naquele ônibus, um alguém que havia ocupado o meu lugar de “elemento estranho, extraterrestre, portador de um objeto deveras perigoso e desconhecido”. Eu, como bom curioso, procurei discretamente (se bem que não tão discretamente) averiguar que livro era aquele que aquela moça estava lendo e que a tinha fisgado de tal forma que ela estava profundamente concentrada na leitura. Quase dou um jeito no pescoço para ver a capa daquele livro, que fazia com que a leitura tivesse uma reação diferente a cada virar de página. Quando finalmente consegui ver a capa, já tendo chamado a atenção daquele que estava sentado ao meu lado e de algumas pessoas próximas, que àquela altura devia já ter me julgado um louco, quase me desequilibro ao constatar que a moça lia um de meus livros. Olhei bem para ela, tentando reconhecê-la entre uma daquelas a quem recomendei a leitura na livraria onde trabalho, mas por mais que me esforçasse, não conseguia lembrar de seu rosto. Fiquei me perguntando como aquele livro tinha lhe caído nas mãos, mas deixei esse questionamento de lado e comecei a reparar em suas reações, para constatar se ela estava ou não gostando, e pelas expressões de seu rosto e seu leve arquear das sobrancelhas, creio que sim. À essa altura, as pessoas no ônibus já estavam me olhando, vendo como eu reparava naquela leitora ao meu lado. Deviam achar que eu me tratava de algum maníaco-pervertido-com-fetiches-por-mulheres-que-leem-em-ônibus (se bem que eles, nesse sentido, têm certa razão). Fiquei pensando se deveria ou não me apresentar a ela como o autor daquele livro, aquele quem escreveu aquela história (uma crônica – tratava-se de um de meus livros de crônicas) que naquele momento lhe arrancava uma sonora gargalhada que acabou chamando a atenção de outros passageiros do ônibus, que olharam para ela com um olhar de estranheza e censura (pensando, por certo, se ela era louca para estar rindo “sozinha”!). Resolvi deixá-la quieta, em paz, final de contas é sempre mais engraçado e interessante ler um livro e suas histórias, se divertir e se identificar com elas do que conhecer aquele quem as escreveu.

            Quando dei por mim, minha parada estava chegando e eu tive que me levantar. Naquela manhã, um dia incomum, eu não li uma única páginas e sequer chegara a abrir a mochila. Quando, já de pé no corredor do ônibus, em frente à porta, olhei para trás, não resisti e dei mais uma espiada para trás, para aquela leitora desconhecida, e quando a vi sorrir novamente me dei conta de que a decisão que havia tomado, de não me apresentar, fora a mais sensata, afinal de contas, como disse, a leitura do livro era muito mais interessante e divertida do que conhecer seu autor.

domingo, 10 de agosto de 2014

Asas

Quando nascem, todas as crianças têm asas para poder ir aonde quiserem, para fazer o que bem desejarem, pois são inteiramente livres, pois pertencem só e unicamente a si mesmas. Elas brincam livres no céu, sob os olhares estupefatos dos adultos, invejosos daquela liberdade e alegria a que é permitido só aos que possuem alma de criança.
            No céu, as crianças se sentiam inteiramente donas de si, e podiam viajar livremente nos braços dos ventos, mas havia uma em especial que era mais livre do que as outras: um menino que tinha um riso capaz de sobrepujar o barulho dos trovões nas noites de tempestade, que tinha asas tão grandes que ele as usava para abraçar a si mesmo quando estava com frio nas noites de inverno. Ele, junto com seus amigos, voavam pelos céus e chegavam perto do sol, mas só ele, ousado como era, ousava se aproximar o suficiente para sentir seu calor a lhe queimar a pele, e fazia isso com tanta frequência que sua cor era de um saudável bronzeado. Nas noites de luar, todas as crianças eram livres para ficar até tarde acordadas, e algumas, quando sentiam sono, podiam mesmo dormir planando no ar ou nos braços de uma estrela, mas diante de tanta alegria e felicidade, eram raras as que sentiam sono. Umas, mais afoitas, voavam bem alto em torno na lua, enquanto outras, mais alegres, brincavam com as estrelas, jogando-as de um lado para o outro, e os adultos, infantis, imaginavam tratar-se de uma “estrela cadente”, quando, na verdade, era apenas uma estrela que se deixava fazer de brinquedo pelas crianças.
            As crianças eram inteiramente felizes e livres, mas aquele menino era mais do que todas as outras, e primeira vez que seu sorriso lhe sumiu do rosto foi quando viu um adulto segurando uma criança, um amigo seu, pelo pé, impedindo-a de voar, prendendo suas asas num abraço apertado para que elas não abrissem. Ele então entendeu que aquele era o primeiro indício de uma obrigação a que os adultos impunham às crianças: o crescimento. Aquela foi a primeira criança que ele via dar seus primeiros sinais de crescimento a que os adultos e o mundo impunham, e ficou triste por dias a fio, sem ânimo sequer para voar. Mas logo esqueceu, como todas as crianças esquecem rapidamente das coisas, pois tinha muitos outros amigos para brincar durante os dias e noites de sua eterna infância.
            Um dia, quando estava no céu a brincar com uma nuvem, fazendo cócegas nela para obriga-la a tomar a forma de um animal, viu uma criança com os pés plantados no chão. Ele a chamou, mostrando como estavam a se divertir, ele a nuvem, convidando-a a participar da brincadeira, ao que ela respondeu com um olhar triste, mostrando que suas asas pendiam inertes. Ele ainda fez menção de ir até ela e voar com ela nos braços, ao que ela recusou, dizendo que a partir daquele momento não poderia mais voar, pois seu lugar era ali, com os pés bem firmes no chão. Ficou com uma lágrima presa na garganta, mas se aquele era o desejo daquela criança, tudo bem, ele respeitaria. Ainda havia, mesmo assim, algumas crianças livres, com enormes asas, embora não tão grandes quanto as suas, com quem poderia brincar e voar livremente pelo céu.
            Passadas algumas semanas, ele, num voo solitário num início de manhã, percebeu que havia menos crianças do que o normal, e olhou para baixo e viu um massacre acontecendo diante de seus olhos: adultos ignorantes prendiam as asas das crianças para que elas não pudessem mais voar, e outros iam ainda mais longe e arrancavam as asas para que nunca mais elas pudessem ser livres. Dessa vez, ele chorou, e suas lágrimas caindo eram como uma tempestade a desabar sobre a cabeça dos incautos que faziam aquilo com as crianças, prendendo-as no chão.
            Algumas crianças, mesmo livres, começaram a não conseguir mais voar tão alto e pouco a pouco foram perdendo, naturalmente, capacidade de voar, e estas, quando punham seus pés no chão e não tinham mais forças nas asas, choravam tão alto que até as estrelas no céu se compadeciam de suas novas condições, presas ao chão. Outras, para evitar perderem suas capacidades de voar, suas preciosas liberdades, tentavam viver uma vida dupla: na terra, como todos, e no céu, livres; mas a estas logo as obrigações do dia-a-dia, as infindáveis rotinas prendiam, a ponto de elas se esquecerem de como se faz para voar, e suas asas caíam inertes ao longo do corpo.
            Uma a uma, as crianças começavam a ficar presas ao chão, umas por que eram obrigadas, com os adultos obrigando-as a se plantarem no chão, enquanto outras tinham as asas as asas brutalmente arrancadas, para que nunca mais pudessem voar livremente no céu.
            Todas aquelas crianças que um dia foram livres não mais voavam, com a exceção daquele menino, que agora brincava sozinho. Ia de uma nuvem a outra, brincava de esconde-esconde com o sol, conversava, à noite, com a lua e ainda jogava, vez por outra, uma estrela de um lado para o outro. Quando olhava para baixo e via um de seus antigos amigos, agora transformados em adultos, chamava por eles, mas eles, tão ocupados em suas rotinas, ou não ouviam, ou não escutavam ou chamado, ou fingiam não ouvir aquele chamado, e seguiam sempre em frente, com a cabeça baixa e os pés bem firmes plantados no chão.  Ele, mesmo percebendo que mais que chamasse os outros não olhariam para cima, continuava a chamar até cansar. E quando eles não podiam mais ser vistos, seja porque entravam em um ônibus, carro ou se trancavam num escritório ou dentro de casa, sentia-se cansado e triste e perdia, por um instante, a vontade de voar, e em uma ocasião quase foi pego por um adulto, que desejava lhe podar as asas.
            Sentia-se só, agora que não tinha uma outra criança com quem brincar e compartilhar as alegrias e sorrisos, e essa solidão foi lhe pesando dia após dia a ponto de tal peso lhe impedir de voar tão alto como gostava. Um dia, não aguentando mais tal peso, resolveu se deixar cair lentamente, tal qual uma pluma que se deixa levar ao sabor do vento. Pousou suavemente no chão e dobrou delicadamente suas asas e começou, a partir daquele dia, a viver como uma pessoa comum, a seguir uma rotina, a ter suas responsabilidades.
            Passaram-se muitos anos e ele cresceu, como toda criança cresce, e, tão ocupado como estava em viver a vida, se esquecia do menino que um dia fora. Nunca olhava para o céu, seja durante o dia seja à noite, e sua pele, antes bronzeada, perdeu a beleza da cor e o viço.
            Mas um dia, enquanto voltava de seu trabalho para casa, parou subitamente, como que algo estivesse a lhe chamar. Era noite e não havia uma única nuvem no céu e ele, ao olhar para cima, ao ver tantas estrelas e a lua a brilhar majestosa no firmamento, e foi então que um turbilhão de lembranças lhe tomou de assalto e ele sorriu e chorou ao lembrar do menino que um dia fora e do qual havia se esquecido. Olhou para as costas e viu as asas abrindo lentamente e sorriu ao perceber que elas ainda estavam vivas e possuíam vigor suficiente para levá-lo ao céu. Respirou fundo duas ou três vezes e deixou suas asas livres para baterem e lhe levarem de volta aos braços do céu. Sentiu seus pés iam pouco a pouco se soltando do chão e ele pôde se tornar o primeiro homem, adulto, a poder voar. Seguia suas rotinas e tinha suas responsabilidades do dia-a-dia, sim, mas sempre que, cansado, voltava para casa, parava, olhava para o céu e ao ver as estrelas e a lua, podia voltar a ser o menino livre que um dia fora, e voar livremente pelo céu, privilégio este que só é dado aos que possuem uma eterna alma de criança e aos que fazem devido uso de suas asas

domingo, 3 de agosto de 2014

Pássaro-livre

Aquele era um pássaro em muito diferente dos de sua espécie. Não era preso às convenções, mas sim inteiramente livre. Não tinha que migrar no inverno, em busca de calor e alimento, como seus iguais, mas ia e ficava onde o sol lhe aquecia e onde podia alimentar sua alma independente da estação do ano. Não cantava só e unicamente nas primeiras horas da manhã, como tantos outros faziam, mas enchia o peito e soltava a voz a qualquer hora, seja para louvar o sol e agradecer-lhe pelo calor, seja para declarar seu amor à lua ou às estrelas. Tinha uma forma peculiar de bater as asas, com um gingado que tornava o seu voar muito mais belo e suave, tendo mesmo certo “quê” de sensualidade. Despertava, sim, por ser como era, certa inveja de alguns pássaros, mas a maioria, o admirava e tinham por ele uma saudável inveja.
Gostava de, pela manhã, ao sentir os primeiros raios de sol a tocar seus olhos, ao sentir os suaves dedos da brisa matutina, estufar o peito e cantar em louvor a vida. Gostava de, quando todos os outros estavam parados, empoleirados numa árvore qualquer, abrir suas asas e sair a bailar livremente pelo céu, tendo como parceiro o vento que o conduzia em passos suaves naquela dança. Gostava até mesmo de, para espanto dos de sua espécie, voar em dias de chuva, deixando que aquelas gotas mágicas que caiam do céu banhassem seu corpo e encharcassem sua alma.
Por ser como era, por chamar a atenção como chamava, começou a chamar a atenção de outros seres de outras espécies, que ficavam pasmos, perguntando como aquele pássaro podia e conseguia ser tão diferente de outros que lhe pareciam tão iguais aos olhos. Por ser livre como era, não notava os olhares cobiçosos que alguns desses seres lhe lançavam e não percebeu quando um homem começou a lhe seduzir com presentes belos, mas tolos, a fim de tê-lo não mais livre, onde todos pudessem contemplar, mas somente para si.
O pássaro, de espírito puro e inocente como era, se deixou seduzir e começou a pousar sem medo perto do homem, que a cada dia o trazia para mais perto de si. Foi o homem ganhando, pouco a pouco, mais e mais, a confiança do pássaro a ponto deste chegar, de certa feita, a pousar em seu ombro e ali ficar por longos minutos e até a se deixar tocar e acariciar suavemente por aqueles dedos rudes.
Certa vez, quando já tinha ganhado a total confiança do pássaro, o homem lhe trouxe um presente: uma gaiola. Encheu aquele ambiente de elogios, dizendo que lhe traria segurança e conforto, e o ofereceu humildemente ao pássaro, que se deixou engabelar por aquelas palavras tão elogiosas e entrou na gaiola. Experimentou-a mas ficou meio desconfiada daquelas paredes vazadas, que lhe permitiam ver o mundo exterior, mas que, mesmo assim, eram paredes, e lhe transmitiam apenas uma ideia de falsa liberdade. Saiu da gaiola, onde se sentia sufocado e voou para bem longe.
No dia seguinte voltou, e o homem lhe ofereceu novamente a gaiola. O pássaro não se sentia confortável naquela clausura, mas vendo o sorriso do homem, e se deixando iludir por aquelas melífluas palavras, acabou por entrar mais uma vez. A mesma sensação de sufocamento lhe tomou, e ele saiu mais uma vez. No outro dia, a mesma coisa. No outro e no outro também, até que começou a se sentir relativamente bem na gaiola, muito embora aquelas paredes lhe transmitissem a sensação de estar enclausurado. Saia se sentindo sufocado daquela gaiola, que por maior e mais confortável que fosse, não deixava de ser o que era: uma gaiola.
Um dia o pássaro veio e se aproximou do homem, que lhe ofereceu, como sempre vinha fazendo nos últimos dias, a gaiola. O pássaro a rejeitou, mas diante daquele sorriso e daquelas palavras, acabou cedendo e entrando, mais uma vez, por aquela porta. Andou um pouco, observou um pouco o mundo através daquelas paredes, e quando já se sentia farto daquele ambiente, quando ele começava a se sentir sufocado, que quis sair, viu a porta fechada e através dela o homem, que lhe contemplava com um sorriso diferente.
- Agora você é meu, passarinho! – disse ele.
O pássaro tentou fugir, jogando-se sobre as paredes, tentando abrir uma pequena brecha por onde pudesse passar, mas por mais que fizesse, por maior que fosse a força que desprendesse, não conseguia mover aquelas grades. Ficou triste como jamais estivera em sua vida.
O homem passou a exibir com orgulho o seu pássaro, que continuou, sim, a cantar, mas não era um canto feliz, de louvor à liberdade e à vida, mas um canto de notas baixas como um lamento.
O pássaro, dentro de pouco tempo, devido ao uso limitado de suas asas, começou a senti-las atrofiar e de onde a sua gaiola ficava empoleirada, ele via, lá embaixo, algumas outras gaiolas que pertenceram outrora a outros pássaros, que em outros tempos foram seduzidos por aquele homem e feitos cativos.
Dia após dia ele começou a ficar mais e mais triste. Suas asas, devido ao uso limitado, começaram a atrofiar e sua garganta a secar, pois seu canto não era mais espontâneo. Quando o homem vinha vê-lo de manhã, que o via naquele estado de espírito, procurava estimula-lo, conversando e imitando, com um assovio, um canto de um pássaro. Mas nada que o outro fizesse seria capaz de fazê-lo voltar a se sentir e a ser o que era antes, pois agora ele não era mais um pássaro livre, mas sim um pássaro engaiolado.
Começou a definhar mais e mais e o seu único consolo era ver, através das grades de sua prisão, os pássaros livres a voar no céu. Um ou outro seu companheiro de outrora vinha pousar perto dele e até sobre a sua gaiola, o que lhe trazia certo conforto, pois isso reavivava o seu sonho/desejo de vir a ser novamente livre e sentir novamente o vento bater sob as suas asas. Quando o outro pássaro ia embora, que ele o via se afastar até se tornar não mais que um minúsculo ponto no horizonte, se deixava tomar por uma aguda depressão.
O homem, preocupado, compadecido com a tão latente dor de seu pássaro, tentava, de todas as maneiras, reanima-lo, mas quando via o olhar dele tão distante, fitando o horizonte infinito, sentia-se impotente, sem saber como trazer de volta o espírito daquele pássaro pelo qual se apaixonara e afeiçoara.
Mas o pássaro definhava à olhos vistos e o homem, não aguentando vê-lo morrer lentamente, abriu a porta da gaiola e atraiu o pássaro para fora. O pássaro, tão fraco estava que mal conseguia se mover, mas fez um imenso esforço para conseguir sair da gaiola que se acostumara a chamar de casa. Ao se ver fora da gaiola, finalmente de posse da liberdade pela qual sonhara, mas que acreditava que nunca mais iria readquirir, ficou desnorteado, sem saber o que fazer. Suas asas pesavam, e o homem, ao perceber tudo isso, o pegou delicadamente e procurou reensina-lo a forma correta de abrir as asas e batê-las. O vento, que passava perto, ao ver seu parceiro de dança naquele estado, resolveu ajuda-lo e soprou suavemente em sua direção. O pássaro, ao sentir aquele delicado toque no rosto, sorriu e abriu as asas. Não precisou batê-las, não precisou fazer qualquer esforço, precisou, apenas, se deixar levar nos braços do vento, que o conduziu suavemente nos passos daquela dança e o levou para o alto, de onde podia ver o mundo todo se descortinar perante seus olhos. O homem ficou, emocionado, a contemplar o pássaro readquirir seu antigo viço e prometeu, naquele momento, que nunca mais iria aprisionar pássaro algum.

O pássaro desceu num voo rasante e pousou no ombro do homem e cantou como cantara em outros tempos, e sua canção, e suas palavras eram de agradecimento por ele ter-lhe restituído a liberdade que, num ato impensado, lhe havia roubado. O homem sentiu-se feliz e honrado ao ouvir aquele canto entoado só e unicamente para ele. O pássaro, então, abriu novamente as asas e voou para longe, sendo novamente o pássaro livre que sempre fora, dançando seu balé no ar, cantando em louvor à vida, à liberdade.