Todos os dias quando acordo, eu fico a me perguntar “por que
literatura?”. Eu poderia ter escolhido me dedicar, por exemplo, à medicina,
assim passando a conhecer o corpo humano a fundo; ou poderia ter escolhido o
direito, para entender o homem em sociedade. Escolhido a literatura, pois só
ela é capaz de possibilitar o conhecimento não do corpo, mas sua alma, ele nos
apresenta o homem não em sociedade, mas o homem consigo mesmo. Mas se engana
quem pensa que a literatura é só isso. A literatura tem inúmeras serventias,
dependendo de como se olha para o livro e de seu estado de espírito. Podemos
encontrar, sim, um elaborado e complexo sistema filosófico, podemos encontrar
uma visão revolucionário do homem pelo homem ou do homem em sociedade, mas
podemos, por vezes, simplesmente nos deleitar com um livro pelo livro,
experimentando momentos de um imensurável prazer no ato da leitura. A leitura
pode nos levar a mil e um lugares sem precisar nos tirar do lugar.
Todas
as vezes que pego um livro, eu me pergunto o que posso vir a encontrar entre
suas páginas, entre um parágrafo e outro, eu me pergunto se tal obra é atual,
por exemplo. A descoberta é sempre única e o livro é sempre atual. O que falar,
por exemplo, de um livro como os de Homero, atuais, que inspiraram termos de
medicina (tendão de Aquiles) ou informática (o vírus de computador chamado
“cavalo de troia”), que, mesmo numa conversa informal entre amigos, sempre,
sempre tem um que fala que recebeu um “presente grego”, se referente ao
presente mais astuto da história e da literatura mundial. Não só Homero, mas
todos os gregos antigos, mesmo sua civilização tendo vivido seu auge há quase
três mil anos continuam atuais, sendo constantemente revisitados em todas as
artes, como cinema, música, artes plásticas e literatura, mas também no nosso
dia-a-dia, no nosso imaginário, sendo mais presentes em nossa vida do que a
gente é capaz de se dar conta. Mas não só Homero e os gregos são atuais, são
importantes. O que podemos falar, por exemplo, de Dante, cuja criação transcende
ao literário e artístico, tendo influenciado fortemente nossas crenças, tendo
mesmo moldado o pensamento de Céu e Inferno de nossa sociedade ocidental,
sejamos nós cristãos ou não? O que falar de Dom Quixote, que é, na minha
opinião, o personagem que melhor sintetiza o homem moderno? E de Shakespeare,
um dos maiores escritores de todos os tempos, tido como um dos principais
cânones da literatura ocidental?
A
literatura é tão fantástica e atual que há personagens/criações, que se tornam
maiores que seus escritores/criadores, chegando mesmo a ofuscá-los! O exemplo
maior disso é quando falamos no nome Conan Doyle. Quantos conhecem esse nome
assim que o falamos? Mas todos conhecem o nome Sherlock Holmes! O maior
detetive do mundo nós reconhecemos imediatamente, sabemos citar suas frases,
sabemos falar de como resolveu alguns notórios crimes, admiramos o seu
raciocínio lógico, etc., a ponto de acreditarmos em sua existência (“como
assim, ‘sua existência’?”, sempre tem alguém que fala! “Sherlock Holmes não
existiu?”, ela sempre pergunta). O caso Doyle-Holmes é, talvez, o mais
conhecido de todos nesse aspecto, mas há muitos outros, de personagens que são
tão fortes e marcantes na história que sua existência ultrapassa os limites e
páginas do livro em que são narradas as suas proezas.
A
literatura, além de ser fantástica em vários aspectos, é visionária e
influencia inúmeras áreas do conhecimento. Para percebermos e ter uma real
noção disso basta que vejamos e estudemos um pouco de Dostoievski, cuja obra
era adorada e chegou, mesmo, a influencia o filósofo Nietzsche e teve um papel
relevante nos estudos e desenvolvimento da teoria da psicanálise de Freud. Para
vermos um aspecto visionário e crítico, por exemplo, da literatura, basta
lermos os dois principais e mais conhecidos livros de Orwell. Temos a
literatura crítica, aquela que denuncia a hipocrisia da sociedade e dos tipos
humanos que a compõe, como no caso de obras como as de Flaubert, Tolstoi, Zola,
Victor Hugo, entre outros. Além disso, a literatura é resgate e retrato da
história e da vida das pessoas, independente de onde e em que época vivem, e
exemplos disso estão na obra de Graciliano Ramos, que foi o autor brasileiro
que melhor retratou a dura realidade e vida do sofrido povo nordestino, daquele
povo que vive nas mais áridas regiões assoladas pela seca de nosso país.
Percebemos isso também na leitura de Charles Dickens, que melhor do que ninguém
retratou a dura vida das pessoas nas cidades de seu tempo.
Temos a
literatura fantástica, aquela que nos faz sonhar, que nos cativa e nos
enfeitiça, como a de Gabriel Garcia Marquez; temos aquela poética, lírica e
delicada ao extremo, como a de Kawabata; temos aquela que nos desafia e nos faz
ser como o detetive responsável pela solução de determinado crime, como a de
Agatha Christie; temos aquela que nos deleita com a plasticidade da linguagem,
como a de Mia Couto; temos até aquela que nos causa calafrios, aquela que nos
dá medo de pegar o livro à noite, como as de Stephen King, Bram Stocker,
Lovecraft ou Allan Poe.
A
literatura não é só umas duas dúzias de nomes e de obras, literatura é um
número infinito de autores, obras, personagens e universos mil que estão bem
ali, ao nosso alcance, para serem descobertos, para nos convidar a entrar e
caminhar num universo fantástico, que pode ser um descrito nas ruas de nossa
cidade, na Paris, Londres ou Moscou do século XIX, em Narnia, na Terra Média,
na Lua, no fundo do oceano ou seja lá em que local ou tempo for... Em se
tratando de literatura, se pode tudo!
Nas engana-se
quem pensa que a literatura só acontece “lá fora”. Temos, aqui, em nosso país,
autores extraordinários que nos fazem bater no peito e ter orgulho de ter
nascido e de viver nas mesmas ruas, bairros, cidades ou apenas no país em que
viveram Machado de Assis (o maior escritor brasileiro de todos os tempos!),
Guimarães Rosa, Álvares de Azevedo, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Jorge
Amado, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, José de Alencar, Chico
Buarque, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Lima Barreto, José Lins do Rego,
Graciliano Ramos, entre tantos e tantos e tantos outros... E ainda tem os que
não são brasileiros, mas são tão próximos, são tão irmãos, que os lemos como se
o fossem, como os casos de Fernando Pessoa, Camões, Eça de Queiroz e Saramago.
A
literatura faz tanto parte de nossa vida que a gente nem mesmo se dá conta. Ela
está em mil e um filmes que assistimos (repare na quantidade de filmes
adaptados ou inspirados na história de amor, uma das mais famosas do mundo, de
Romeu e Julieta), seja ele mais cult e intelectual, seja ele um voltado para o
entretenimento, aventura, fantasia, suspense ou mistério (vide os baseados nas
obras de Tolkien, O senhor dos anéis
e O Hobbit, olhe os fantásticos
filmes baseados na série de livros de Harry
Potter), temos os seriados que amamos acompanhar episódio a episódio (como
o Game of Thrones, baseado na obra de
George R. R. Martin). Está, também, presente e inspirando as mais diversas
artes.
Quando
eu paro e penso nisso tudo, na importância que a literatura tem para a nossa
história, no quão presente está em nossa vida, que me dou conta do que já li e
do que ainda tenho para ler e descobrir e que me aproximo de uma resposta que
me seja realmente satisfatória para a pergunta que sempre me faço: “por que (e
para quê) literatura?”