sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Mais um menino no sinal

Era perto de meio-dia e naquele sol escaldante, protegido por uma míngua de sombra, aguardava pacientemente um menino que o sinal de trânsito mudasse de cor e acendesse a luz vermelha para os carros pararem. Estava cansado, o suor escorria por seu rosto e estava preocupado, pois o que havia apurado naquela manhã era muito pouco. Pensou nos irmãos mais novos; pensou na escola em que deveria estar àquela hora, na aula que estava perdendo. Mas na dura realidade de menino pobre, de família muito humilde habitante de periferia de grande cidade, não havia a possibilidade de escolha: era frequentar a escola ou ajudar no sustento da casa. Adoraria poder estar na escola, aprendendo, absorvendo os conhecimentos transmitidos pelos professores daquela pequena escola localizada na zona oeste da cidade.
            Ficou tão absorvido pelos devaneios da escola que nem se deu conta que o sinal havia fechado e já estava prestes a novamente abrir. Xingou a si mesmo. Havia perdido a possibilidade de, talvez, ganhar alguns trocados. Parou de pensar nas aulas, nos professores e nos colegas para prestar atenção só e unicamente no sinal de trânsito que estava bem à sua frente e nos carros.
            O tráfico era intenso naquele cruzamento. Vendo todos aqueles carros de todas as cores e modelos, o menino se perguntou se alguma daquelas pessoas fechadas atrás daqueles vidros, protegidas do calor pelo ar-condicionado, prestava atenção nele. Muito provavelmente não. Talvez estivessem entretidas nas músicas que ouviam ou pensando nos compromissos do dia ou simplesmente preocupadas no processo de dirigir, executando os movimentos mecanizados da troca de marchas, aceleração e frenagem.
            Viu quando os carros começavam a diminuir a velocidade e olhou para o sinal. A luz verde dera lugar à amarela e ele se preparou para entrar em cena. Quando os carros pararam, ele se dirigiu à faixa de pedestres, por onde as pessoas atravessavam, cumprimentou os motoristas num gesto amplo, mas muitos dos quais nem sequer o perceberam, e começou a realizar seu número. Atirou algumas bolas para o alto e iniciou uma brincadeira de malabarismo que lhe fora ensinada, certa vez, por outro menino naquele mesmo cruzamento. Findo o número, inclinou-se, agradecendo, e só então voltou novamente os olhos para os motoristas, para perceber que mais uma vez praticamente ninguém o tinha observado. Estava já acostumado àquilo, a se sentir um alguém invisível num cruzamento em frente a um sinal, mas, mesmo assim, resolveu caminhar por entre os carros distribuindo sorrisos e pedindo algum dinheiro que algum daqueles motoristas compadecido de sua situação pudessem lhe dar. Naquela vez, apenas uma mulher, que vinha com uma criança no banco de trás, abaixou o vidro para lhe dar umas poucas moedas, que ele agradeceu ao receber. Era pouco, quase nada, mal dava para comprar pão, mas ele agradeceu imensamente. O sinal abriu novamente e ele voltou para a proteção de sua sombra.
            Olhou para a bolsa que tinha amarrada em torno da cintura, onde guardava o dinheiro. Aquele não tinha, definitivamente, sido seu dia de sorte. Iria tentar mais uma última vez e iria para casa. Talvez no dia seguinte alguém, motivado por um sentimento de misericórdia, prestaria atenção a sua habilidade no jogo de malabarismo com bolas e lhe recompensasse com algumas moedas ou talvez com alguma nota.
            Quando o sinal fechou para os carros, realizou o mesmo ritual de sempre. Cumprimentou os motoristas e começou a jogar as bolas para cima, mas algo dera errado, bateu uma mão na outra, perdeu o tempo e as bolas caíram no chão e rolaram entre os pneus dos carros. Sorriu, sem jeito, pedindo desculpas, e percebeu que dessa vez algumas pessoas o observavam mais atentamente, sorrindo ante a falta de jeito do menino, mas reconhecendo o seu esforço. Alguns abaixaram os vidros e lhe ofereceram como recompensa umas moedas, que ele recebeu de bom grado, e quando o sinal já estava prestes a fechar, quando já estava para sair do meio dos carros, ouviu a buzina de um que estava perto do final da fila. Ele levantou a cabeça e viu que um alguém lhe acenava. Correu até lá, olhando para trás, para o sinal, que já ia ficar verde. Quando chegou, viu que o motorista era um senhor de tez morena e cabelos grisalhos e, no banco de trás, vinha uma menina entretida com um objeto que ele não conseguiu reconhecer. O homem lhe entregou uma nota, algumas moedas e lhe deu algo que ele recebeu sem olhar, pois o sinal abrira. O menino correu para a calçada e voltou para a proteção de sua sombra, guardando o dinheiro dentro de sua bolsa, pensando se valeria a pena tentar mais uma última vez o seu número, mas estava muito cansado e o sol, muito quente. Melhor voltar para casa, pois aquele seu dia não estava sendo dos melhores. Quem sabe o outro teria mais a lhe oferecer do que umas pouquíssimas moedas e três notas de valor baixo.
            Quando já guardava suas coisas numa mochila rasgada, foi que se deu conta daquilo que aquele senhor lhe entregara e ele ainda não tinha atentado para o que era. Um livro! Aquele senhor lhe dera um livro! Durante todo aquele tempo em que pedia dinheiro nas ruas, em que realizava números diversos para chamar a atenção de motoristas, já recebera inúmeras coisas: dinheiro, comida, uma ou outra palavra, mas nunca ninguém lhe dera um livro. Não prestou atenção sequer as cores vibrantes da capa, não o abrira para ver as ilustrações e não chegou sequer a ler seu título, jogou-o dentro da mochila e foi embora pra casa.

Em casa, viu a mãe cansada, pois passara a manhã inteira a lavar e passar roupa; viu os irmãos menores brincando com outros meninos da rua. Jogou a mochila num canto do quarto e se jogou na cama, e só se levantou quando sentiu um vazio do estômago e o ouviu reclamar. Foi até a cozinha e levantou as tampas das panelas só para ver que tinha o mesmo do dia anterior, do anterior do anterior, do anterior do anterior do anterior... Soltou o ar de uma vez, pois esperava que, pelo dinheiro que conseguira em outros dias, pudesse ao menos comer algo diferente e um pouco melhor. Mas era melhor não reclamar, pois pelo menos tinha o que comer, enquanto outros meninos de sua rua nem isso tinham.
            A casa estava em silêncio. Sua mãe estava no quintal, lavando e estendendo roupa, e seus irmãos estavam do lado de fora. Foi para seu quarto e lá ficou olhando para o teto até que pegou no sono.
           
No dia seguinte, acordou com os primeiros raios de sol, tomou um banho fio, comeu um pão com margarina e bebeu um copo de café e se aprontou para sair. Antes de fechar a porta de casa, olhou para os irmãos dormindo e para a mãe, que já estava de pé, trabalhando.
            Quando chegou ao cruzamento, que abriu sua mochila, foi que se deu conta de que o livro ainda estava ali. Soltou todo o ar dos pulmões de uma vez, aborrecido, pois havia trazido aquele peso à toa. Mais uma vez, não reparou naquele objeto, pegou as bolas e esperou que o sinal fechasse para passagem de carros.
            Aquele dia foi bem melhor do que o anterior. Não deixou as bolas caírem nenhuma vez e recebeu muitas moedas, tanto que já pensava em ir pra casa mais cedo e passar antes no mercadinho do bairro para comprar algo diferente para almoçar, e quando já se preparava para ir embora, que abriu a mochila para guardar as bolas, atentou para o livro que estava ali dentro. Retirou-o da bolsa e prestou atenção pela primeira vez nele. Passou as páginas lentamente reparando nas ilustrações, mas não tentou lê-lo. Ficou tão entretido no colorido, imaginando a história que havia por trás de cada uma, no mistério que aquelas letras impressas guardavam, ansiando para serem descobertos, que nem se deu conta que um carro buzinava freneticamente tentando lhe chamar a atenção. Só quando levantou a cabeça foi que viu que uma mulher a lhe acenar, chamando-o. Ele, com o livro na mão, correu até ela, que sorridente, impressionada por ver um menino numa esquina, debaixo do sol, com um livro na mão, pegou um livro que trazia no banco de trás do carro e estendeu para ele. Junto com o livro ela lhe deu umas moedas, que ele recebeu de bom grado.
            O sinal então abriu e a mulher lhe sorriu abertamente antes de engatar a primeira marcha e seguir para seu compromisso, não sem antes lhe desejar uma boa leitura. O menino pegou os dois livros, guardou-os cuidadosamente na mochila e foi para casa.

Tomado por um estranho sentimento que não sentia há tempos, não saiu de casa no dia seguinte. Quando sua mãe lhe perguntou se estava se sentindo bem, ele apenas sorriu e disse que sim. Ela foi lavar roupa e ele foi para o quarto, onde tinha deixado sua mochila. Abriu-a delicadamente e de lá retirou o primeiro livro. Mesmo balbuciando, pois seu domínio de leitura era precário, conseguiu ler o título do livro, as primeiras palavras e frases, e logo se viu imergido naquela história fantástica. Quando o fechou, que olhou ao redor de si, viu que tinha muito de diferente-igual ao personagem do livro e sentiu uma imensa gratidão por aquele senhor que lhe dera aquele primeiro livro. Mal tomou novamente fôlego, pegou o segundo livro e o leu de supetão tomado por uma imensa alegria.
            Aquelas leituras, aquele momento em que esteve a sós consigo mesmo e com todo aquele mundo de personagens, trouxe consigo um sentimento de liberdade que jazia esquecido no peito do menino.
            Saiu de casa às pressas, pegou o primeiro ônibus que viu e chegou ao cruzamento onde ficava todos os dias sem fôlego, mas em êxtase. Naquele dia não fez uma única vez seu número de atirar bolas para o ar. Ficou o tempo todo com o olho nos carros para ver se reconhecia aquele carro cujo motorista lhe abrira a janela há dois dias e lhe entregara um livro que ele não prestara atenção, mas que só naquela manhã ele tinha notado o seu valor. Ficou olhando para todas as janelas para ver se via novamente aquela mulher de sorriso tão aberto
            Não viu nenhum dos carros, não encontrou nenhum daqueles olhares que desejava reencontrar, mas não ficou triste. Voltou para casa estranhamente pensativo. Chegando lá, viu que sua mãe tinha preparado algo especial para o almoço, e só então se deu conta de que dia era aquele: seu aniversário! E ele sequer tinha se dado conta.
            Recebeu das mãos da mãe um embrulho, que ele prontamente rasgou e viu uma mochila e alguns cadernos. Agradeceu imensamente os presentes e a abraçou.

Não foi para aquele cruzamento esperar que o sinal fechasse no dia seguinte, no outro e no outro, mas toda manhã saía de casa nas primeiras horas da manhã, como sempre fazia, mas com destino à escola. Sentia uma imensa alegria ao ouvir o sinal sonoro indicando o início das aulas e uma leve tristeza quando soava o do fim.
            Um dia sua aula havia terminado mais cedo e foi caminhando em direção ao ponto de ônibus. Passou naquele cruzamento tão seu conhecido quando viu um carro parado ao final da fila. O motorista o reconheceu e buzinou para lhe chamar a atenção. O menino abriu o sorriso e acenou, agradecendo. O sinal abriu o homem seguiu seu trajeto enquanto o menino continuou caminhando pelas calçadas, com a alma leve, com um pensamento vagando livremente. Seguia em silêncio, por mais que tudo ao seu redor fosse barulho, e ao atravessar uma rua, ouviu o barulho de um buzina. Olhou para o lado e viu aquela mulher sorridente e lhe acenar. Ele retribuiu seu sorriso e colocou a mão sobre o peito, como que para indicar o nome da escola, e ela acenou positivamente.
            Aqueles encontros, naquele dia, talvez tivessem sido mero acaso. Talvez aquelas duas pessoas se conhecessem, talvez não, mas fato é que ambos foram providenciais na vida daquele menino. Aqueles atos, simples, abriram os olhos e deram uma outra perspectiva de vida àquele pequeno malabarista, lhe deram uma outra possibilidade de crescimento na vida, e a forma que ele encontrou para expressar sua gratidão foi de reler aqueles livros vezes sem conta, em especial no dia de seu aniversário.
           
Mesmo já tendo passado tantos anos, mesmo ele já sendo, agora, um adulto, aposentado, ele continuava a ler aqueles livros infantis, e quando se deu conta de quão egoísta era, pegou-os, guardou-os dentro de uma mochila e saiu de casa. Dirigiu por ruas desconhecidas, passou por inúmeros cruzamentos até chegar àquele tão familiar, que mesmo tendo mudado tudo ao redor, continuava estranhamente familiar. Quando o sinal fechou, viu um menino se dirigir até o centro da faixa de pedestre e começar a atirar as bolas para cima. Quando ele terminou, ele sorriu, buzinou, chamando a atenção do menino, abriu o vidro do carro e lhe entregou a mochila onde estavam guardados os bens mais preciosos que alguém havia lhe dado naquela esquina. O menino agradeceu, mas quem agradeceu mais ainda foi o homem que um dia fora um menino igual ele, no mesmo sinal, fazendo as mesmas coisas, ganhando os mesmos trocados, e que agora estavam intrinsecamente unidos pelos mesmos livros.