sábado, 31 de dezembro de 2016

Balanço anual de leitura - 2016

Todo início de ano, como milhões de pessoas fazem ao redor do mundo, eu também traço planos e metas para serem cumpridas ao longo dos 365 dias que estão por vir, no entanto, diferente da maioria das pessoas, eu traço planos e metas de leitura.
            Tudo bem que, como todo mundo, eu traço planos mirabolantes e metas impossíveis de serem alcançadas, como algo do tipo Ler 200 livros ou Iniciar a leitura de Ulysses, mas pelo menos eu corro atrás dos 200 livros, embora sabendo que nunca vou alcançar tal marca, já quanto a Ulysses... Tenho o livro há mais de dez anos e só o abri uma vez para ver como era ao menos seu início, e vendo que não estou preparado para empreender tal leitura, o fechei imediatamente.
            Foi, no fim das contas, 2016, apesar de ser um ano trevoso em muitos aspectos, imensamente feliz no que tange à minhas leituras. Não consegui bater a meta dos 200 livros, mas li 47 (e nesse ano, pela primeira vez, contei a quantidade de páginas e cheguei a marca de quase 11.000!), e nunca um ano foi tão bom e me ofereceu momentos de êxtase literário tão intensos, fazendo com que eu, como leitor, me perguntasse onde foi e em que mundo eu vivi para não ter lido aquele livro ainda! Livros que me deixaram angustiados, que me tocaram fundo na alma, que me abriram os olhos, aguçaram a minha sensibilidade, que me fizeram rever certos conceitos, que me ensinaram muito sobre a vida, o universo e tudo o mais...
            Se em anos anteriores foi difícil listar os livros destaques entre as leituras empreendidas ao longo do ano, nesse ano de 2016 foi difícil listar só alguns, pois foram tantos que eu, hoje, dia 31 de dezembro, olho para trás, para todos os livros lidos desde o início do ano, e respiro aliviado dizendo mentalmente um “que ano bom...”.
            Em 2016, como já é tradição minha, iniciei o ano lendo uma obra referência na literatura mundial, de relevância para a tradição de seu país. Meu primeiro livro foi O Mestre e Margarida, do russo Bulgákov e o último, O Idiota, do também russo Dostoievski. Entre esses dois, li muitos clássicos das mais diversas tradições literárias. Li A Letra Escarlate, de Hawthorne, Gargântua, de Rabelais, Eugênio Oneguin, de Pushkin, O Avarento, de Molière, Memórias do Subsolo e Gente Pobre, de Dostoievski, Águas Primavera, de Turgueniev, Cândido, de Voltaire, Esperando Godot, de Beckett, Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, entre outros tantos clássicos da literatura mundial. Isso fora as adaptações em quadrinho de grandes obras que li. Ou seja, no que se refere à leitura de clássicos, meu ano foi magnífico. Dos quadrinhos baseados em grandes clássicos da literatura, destaco a leitura dos brasileiros Grande Sertão: Veredas e Vidas Secas, obras magníficas que foram primorosamente adaptadas para a linguagem dos quadrinhos, resguardando a sensibilidade das obras originais sem contudo ter um toque de originalidade. Dos baseados em obras de literatura estrangeira, destaco Oliver Twist, que me deixou tão fascinado que resolvi ler a obra na íntegra no início de 2017.
            Dos contemporâneos e do século XX, tive grandíssimas surpresas, descobrindo obras estupendas.  Não saberia dizer qual livro me fascinou mais: se Tirza, de Grunberg, ou Stoner, de John Williams; qual me encantou mais: se A Última Estação, de Parini, O Olho de Vidro do meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós, ou se Extraordinário, de R. J. Palacio (este último capaz de nos fazer rir em chorar em questão de parágrafos); qual o mais sensível no trato a temas duros: se Uma História de Solidão, de John Boyne, ou A Vida em Tons de Cinza, de Sepetys; qual, dentre os contemporâneos já consagrados, qual o mais forte, intenso e magnífico: se Desonra, de Coetzee (autor laureado, inclusive, do Nobel de Literatura), Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie (nigeriana que vem se destacado no cenário literário e como uma das mais atuantes feministas da atualidade), ou A Balada de Adam Henry, de Ian McEwan (um dos mais importantes autores britânicos contemporâneos); ou qual quadrinho mais me fascinou: se Maus, de Spiegelman, ou Três Sombras, de Pedrosa.
            Alguns livros que li, é bem verdade, me decepcionaram um pouco, como O Senhor das Moscas, de Golding, e não gostei tanto de O grande Gatsby, de Fitzgerald, mas nada que chegasse a macular o meu magnífico ano de leituras.
            Em 2017, que é daqui a pouco, espero ter um ano tão repleto de descobertas literárias quanto foi o meu 2016. 

sábado, 26 de novembro de 2016

Fim de um ciclo e início de outro

Nos últimos onze anos e meio, entre 13 de abril de 2005 e hoje, 26 de novembro de 2016 (período que fora interrompido apenas entre 19 de outubro de 2015 a 02 de junho deste ano), eu vivi intensamente uma profissão, tomando-a não como minha “profissão”, como meu “ganha pão”, mas assumindo-a como minha verdadeira função. Fui não só um profissional, mas um homem, que sempre disse abertamente que amava o que fazia e fazia o que amava.
Fiz tudo o que podia pelas livrarias em que trabalhei (Siciliano, Saraiva e Leitura), ajudando no crescimento de cada uma dessas empresas. Mais do que fidelizar clientes, enquanto atuei na área, cativei leitores, construindo uma relação de respeito, confiança e admiração por cada uma daquelas pessoas que adentrava pelo mágico portal da livraria. Cada palavra trocada com leitores, entre as mesas, em frente às estantes, era uma palavra enriquecedora, era única e podia até não ser necessariamente sobre literatura (mas de uma forma ou de outra, em algum momento, aquela conversa iria acabar num livro). Trocar impressões e sensações que a leitura de tal livro nos causou era o ponto alto de cada conversa, o momento mais prazeroso de cada dia.
Fiz inúmeros amigos que carregarei até o fim de minha vida. Amizades intensas, verdadeiras, eternas, tanto aqueles com quem tive a imensa honra e grande prazer de trabalhar, quanto aqueles com quem me perdia numa prazerosa conversa.
Fiz tudo isso e muito mais, e se eu tivesse que viver a minha vida novamente, faria tudo exatamente igual. No entanto, a vida é repleta de ciclos, de momentos, de desafios, e o meu ciclo na livraria, trabalhando, seguindo a rotina, já vinha chegando ao fim. Não foi um fim súbito, nem foi algo como um amor que se apaga, uma paixão que esmorece, pois carregarei esse amor e essa paixão por minha profissão e pelos ambientes em que trabalhei para o resto da vida, mas sim algo natural, algo que chegou sem estardalhaço, como uma sementinha que fora plantada e regada lentamente, gota a gota.
Desde 2014 eu me descobri professor, e minha paixão por literatura se expandiu, vendo que podia atuar em outra área de forma conjunta à livraria. Dei aula naquele ano, intensifiquei as palestras ministradas nas escolas e em cada oportunidade que tinha para falar para várias pessoas no ambiente da escola eu me encontrava mais e mais; em cada vez que punha os pés numa escola me sentia mais e mais em casa.
Em 2015, ministrei o primeiro curso de literatura, experiência esta que me serviu para ver e sentir que ali, na frente de uma sala de aula, eu me sentia bem, à vontade, perfeitamente integrado. Em 2016, um novo módulo do curso foi oferecido e percebi que o meu ciclo em livrarias estava chegando ao fim, que migrar para o ambiente escolar era só uma questão de tempo.
Em meados deste ano voltei a trabalhar numa outra livraria, recebi uma oportunidade na Leitura e atendi ao chamado após ter ficado um tempo ausente no mercado de trabalho (logo após a demissão da Saraiva). Voltei a trabalhar como sempre trabalhei nessa nova empresa: com imensa paixão, dando o meu melhor, ajudando no crescimento da livraria.
Paralelo ao trabalho na Leitura, as palestras ministradas em escolas se intensificaram ainda mais (acontecendo toda semana, toda quarta-feira para ser mais preciso, e por vezes até duas vezes num mesmo dia!), e em cada escola que eu visitava, eu sentia que aquele ambiente me chamava, e cada vez que eu saía de uma escola, olhava para trás para dizer um “me espere só mais um pouquinho”. Durante essas vivências nas escolas, passei a ver pontos positivos e onde podia atuar para buscar melhorias não só para a instituição, mas principalmente para os alunos.
A semente que fora plantada passou a ser regada abundantemente.
Junto com amigos, fomentamos e criamos o projeto Semear Livros, e comecei a me sentir mais e mais atraído pela ideia de ficar, de uma vez por todas, numa daquelas escolas. Comecei a sondar amigos a fim de conseguir uma vaga para trabalhar como professor ou em outra função, desde que estivesse intrinsecamente relacionada à educação, desde que eu passasse a habitar aquele ambiente mágico chamado escola.
Eis que numa conversa, na última quarta-feira, com meu amigo Josiberto Rego, quando falamos justamente sobre o meu desejo de ir para escola, ele me fez propostas. Disse que tinha vaga para professor, sim, mas que tinha em mente “algo mais legal e importante”, uma função na qual eu poderia fazer algo maior em prol dos alunos, desenvolver meus projetos, ser e atuar como idealista que sou. Pediu apenas um ou dois dias para organizar umas coisas, para só então ele fazer a “proposta formal”. Na última quinta, dia 24, quando chegava em casa, por volta das 22h, meu celular toca. Era Josiberto. Mal eu disse “alô”, ele já soltou de supetão, já fez a proposta “irrecusável”: trabalhar na diretoria pedagógica do Colégio CDF. Nem no meu momento de maior insanidade havia pensado em algo daquele tamanho, daquela importância, em enfrentar um desafio de tal tamanho!
Tivemos uma conversa longa e séria, em que ele me explicou os processos, as ideias que ele tem para a escola, o que espera de mim, etc.
Como disse, a proposta era irrecusável, e por diversos motivos. Era algo do tipo “pegar ou largar”, e eu a peguei, já mergulhando de corpo e alma nela, assumindo minha função antes mesmo de ocupar o cargo.
Não foi fácil viver os últimos dias. Quase não dormi, tamanha a ansiedade que sentia pulsar na minha cabeça, no meu peito e em todo o meu corpo.
Não foi fácil anunciar a minha decisão de sair da livraria ao gerente, às coordenadoras, não foi fácil me despedir das pessoas com quem trabalhei nos últimos meses, não foi fácil olhar para cada canto daquela livraria uma última vez, dizendo “voltarei aqui, sim, mas em outra posição, não mais como vendedor, mas como cliente, pois estou de mudança, minha casa será outra daqui a pouco”.
Fiz tudo que estava ao meu alcance, sim, pelas livrarias onde trabalhei, volto a dizer. Não fiz, é bem verdade, tudo o que gostaria e poderia ter feito e tenho orgulho do que fiz, mas lamento imensamente pelo que ainda poderia ter feito. Mas mesmo com o não feito, sinto imenso orgulho pelo que alcancei nos últimos onze anos e meio, e agora chegou o momento de fazer mais em outra área.
Fiz muito pelas empresas, pelas livrarias e principalmente pelos leitores, e agora chegou o momento de fazer pela escola, pela educação e principalmente pelos alunos, pelos indivíduos.
Chegou o momento de encarar novos desafios, que não serão nada fáceis, mas que me sinto, mais do que nunca, preparado. Lutarei batalha a batalha, dando sempre o meu melhor, atuando não só com profissionalismo, mas com extrema paixão.

sábado, 15 de outubro de 2016

Todo professor é louco!

Todo professor é meio maluco. Meio maluco não, completamente maluco, um ser inteiramente insano, um alguém com parafusos soltos e em falta mesmo. Mas não se trata de uma loucura à toa, mas sim consciente, de um alguém que ouve mais do que outras pessoas, e prova disso é o fato dele ter ouvido um chamado, uma voz que vinha lá de longe, e que ele, mesmo sem distinguir o que dizia, entendeu os sentidos do som e, louco como é, agarrou a profissão e mergulhou nela de corpo e alma.
            A loucura de ser professor é uma coisa que deveria ser estudada seriamente por Freud ou por algum neurocientista, filósofo, psicólogo, sociólogo ou por algum estudioso de uma outra área, pois não existe nada que explique o fato desse maluco querer se dar tanto a uma profissão tão estigmatizada, que tem que conviver com, muitas vezes, tão precária estrutura, tão pouco valorizada pelos poderes públicos, por parte da sociedade e até por (pasmem) gestores da educação. E mesmo sabendo de tudo que lhe espera, o insano, ainda assim, sorri, e vai através de sua vocação, o que só se explicaria através de uma palavra: sádico. Isso mesmo, sádico!
            Todo professor-maluco é meio sádico, pois ele parece encontrar um imenso prazer naquele sofrimento que aquela profissão lhe inflige. Acordar cedo, quando todos em sua casa estão dormindo, para estudar mais um pouco para ministrar uma boa aula; passar finais de semana preparando aula, quando todo mundo saiu para passear, para curtir uma praia ou um cinema; passar noites em claro elaborando prova, corrigindo prova, organizando caderneta... Só sendo um completo sádico em encontrar prazer nisso tudo!
            Mas sabe por que o professor faz isso tudo? Porque ele ama o que faz e faz o que ama.
            Por mais que uma parcela da sociedade diga que ele não vai ser reconhecido, por mais que alguns gestores não façam o menor esforço em valorizar seu trabalho, por mais que o seu salário fique aquém de seu esforço e dedicação, por mais que tenha que sacrificar suas noites de sono, finais de semana e feriados para preparar aula, prova e organizar cadernetas e outras coisas mais inerentes à sua função, ele vai fazer tudo isso com um sorriso no rosto. Sua expressão pode até estar cansada, seu corpo poder até estar exigindo descanso, mas sua alma está leve, seu olhar demonstra determinação e amor por aquilo que faz e seu sorriso estampa a imensa satisfação que tem em poder dizer que é professor, e ele faz isso com imenso orgulho.
            O professor faz isso tudo não necessariamente por que ele escolheu tal profissão, mas por ter sido escolhido por ela, e ele, honrado, atendeu ao chamamento, e ele assim o fez motivado por um imenso amor, por ser um incorrigível idealista, por acreditar, ainda que tudo diga o contrário, que a educação é a chave de tudo, e ele quer ser um instrumento naquele trabalho que é mais do que formar um estudante, que é mais do que passar conteúdo, mas formar o indivíduo, formar o humano.

            O mundo ai fora pode estar louco (vemos loucuras sendo cometidas a torto e a direito a todo instante – loucuras que dão ibope, que, tenho a impressão, são orgulhosamente ostentadas), mas para nos proteger dessa loucura temos super-heróis que, munidos de suas loucuras, abraçaram uma causa e que fazem o possível e o impossível para, de alguma forma, ajudar na remediação, de salvamento do mundo, e para isso eles mergulham fundo e iniciam esse processo lá na base, ainda na infância, ensinando os pequeninos a usar uma arma mais poderosa, não de destruição em massa, mas de salvação individual (quiçá em massa, vá...) chamada Educação.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Voltar a ser menino

Eu queria voltar a ser menino, nem que fosse por cinco minutos em minha vida. Queria simplesmente ser menino, esquecer das coisas facilmente como só os meninos esquecem e manter vivas, na memória, outras. Queria não ter preocupação alguma, responsabilidade com nada, viver só e unicamente para mim, para aquele momento, e só. Queria poder ver a chuva caindo lá fora e não a temer, não me preocupar com ela; simplesmente poder abrir a porta de casa e sair, tomar um bom, revigorante e sempre rejuvenescedor banho de chuva. Eu queria voltar a ser menino para isso tudo, mas também para muito mais.
Queria poder ser livre, rir com um nada, brincar com um tudo, queria simplesmente viver. Queria ficar por uns instantes com a cabeça tão longe, pensando em algo que está tão perto. Queria poder me sentir como um pássaro no alto de uma árvore, colher uma fruta madura direto do pé e sentir o seu sabor doce como a vida. Queria poder brincar com um cachorro, correr atrás dele, depois deixar que ele me perseguisse numa corrida louca e desenfreada pela rua. Queria poder soltar pipa, jogar biloca (também conhecida como “bolinha de gude”), chupar confeito, mascar chiclete e me deliciar com outras tantas guloseimas. Queria poder ficar descalço, jogar futebol na rua, arrebentar-me inteiro numa queda de bicicleta e, quando ouvir minha mãe chamar, gritar um “já vou”.
            Eu queria voltar a ser menino simplesmente para brincar, para correr, para esconder-me e para achar-me, para ser o que eu era, para ser o que sempre fui e que nunca deixarei de ser – simplesmente menino.
            Eu queria voltar a ser menino para brincar na rua, para ter de volta, nem que fosse por um curto instante, medo do escuro à noite, medo dos trovões em noite de tempestade. Queria poder acordar de madrugada nessas noites escuras, frias e chuvosas e ir bater à porta do quarto de meus pais e pedir para dormir naquela cama enorme, entre meu pai e minha mãe, debaixo daquele cobertor, que estava sempre quentinho.
            Eu queria voltar a ser menino para, ao fechar os olhos, não pensar em nada, e ter, simplesmente, uma boa e longa noite de um sono reparador, que me deixaria pronto para o dia seguinte repleto de coisas novas, de novas, velhas e conhecidas brincadeiras.

            Eu não quero, não posso, nunca em minha vida, deixar de ser menino, porque deixar de ser menino é esquecer todos os maravilhosos momentos que vivi, que não voltarão nunca mais, que vivem eternamente em minha memória e só lá eu posso, sempre, voltar a ser o que sempre fui: um eterno menino.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Semear livros, cultivar leitores

A literatura é uma das mais democráticas expressões estéticas e artísticas, podendo ser apreciada, sem qualquer espécie de distinção, por leitores de todas as idades, nacionalidades, sexo, credo, classe social, cor, ideologia ou qualquer outro caractere distintivo. É tão plural e fantástica que existem livros para cada momento de nossas vidas, para cada estado de espírito que estamos atravessando. 
Se estamos tristes, há livros capazes de nos fazer sorrir, de levantar o nosso astral; se estamos felizes, há obras capazes de expandir e maximizar ainda mais a nossa felicidade; se estamos cansados, há aquele livro que é capaz de nos aliviar o peso opressivo que recai sobre nossos ombros; se estamos passando por um momento deveras difícil, sem saber nosso lugar no mundo, há aquelas obras de natureza reflexiva capazes não de nos dar respostas, mas ao menos de nos fazerem abrir os olhos, de nos orientar quanto a um caminho que possamos seguir; se buscamos inspiração, tem sempre um livro capaz de aguçar nossa sensibilidade; se buscamos um mero entretenimento, uma leitura leve, algo que nos ajude a apenas passar o tempo, há também inúmeras obras capazes de nos ajudar; se buscamos informação, há; se estamos à procura de ampliar nossos horizontes, de conhecimento, de instrução e formação, é a literatura a que recorremos; e se buscamos, acima de tudo, algo capaz de contribuir substancialmente na nossa formação humanística, é na literatura que encontramos a fonte da qual bebemos a água capaz de saciar a nossa sede de conhecimento, que nos acalma e que gentilmente assenta, tijolo a tijolo, os muros e pontes da nossa construção intelectual... 
São tantos “se” que tem na literatura uma resposta, uma fonte, um refúgio, que poderíamos nos estender até o fim dos tempos. A literatura é tão plural e extraordinária que até os que não têm amplo domínio da palavra escrita e falada se calam para ouvir as histórias e contemplar as imagens que saltam das páginas dos livros nas gravuras multicoloridas e nas melífluas palavras de um contador de história. 
Cada literatura, no entanto, há o seu devido tempo para ser semeada, cultivada, dia a dia, livro a livro, para ser colhida e devidamente saboreada. Pensando nisso e sabendo da nossa missão, sabendo do quão importante é o acesso à literatura nas mais diversas fases de nossa vida, principalmente naquela de formação de identidade e consciência, criamos o projeto, a ação #SemearLivros, que tem como objetivo Cultivar Leitores, que visa levar a literatura a alunos de escolas da rede pública de ensino. Muitas vezes, as escolas possuem um acervo deficitário em algumas áreas, e nós, muitas vezes, possuímos aqueles livros que ficam fechados, guardados nas nossas estantes, livros que não serão mais relidos e que clamam por vida nas mãos de novos leitores. Os livros foram feitos para serem lidos, para ganharem e darem vida a cada leitor que mergulha em suas páginas; e livros parados, fechados, são livros mortos, meros objetos; abertos, eles são como o guarda-roupa de Nárnia, que nos transportam para outro e fantástico universo. Aproximemos, então; abramos as múltiplas portas dos guarda-roupas de Nárnia para aqueles que anseiam por eles atravessar, para os que desejam crescer, abrir os olhos e se deleitar com a extraordinária arte-das-letras do mundo literário.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Carta aberta à Saraiva

Hoje estou ferido de morte. Justo eu, que tanto resisti a tantas pancadas, a tantos ferimentos, agora me entrego, pois olho para o céu desesperançado e o vejo negro.
O ferimento que eu sofri foi muito profundo e por ele escorre não o sangue pouco a pouco, mas corre aos borbotões, tirando-me uma das coisas para as quais tanto me dei, a qual, com tanto amor ajudei a construir: minha casa. O ferimento não me foi afligido de forma justa, mas me foi dado pelas costas, de forma vil, quando não estava preparado. O golpe por si só não me afetaria, não me feriria de todo, pois sou feito de ferro forte e seria capaz de logo “esquecer”, de me reerguer rapidamente e tocar a vida como sempre a toquei, mas acontece que esse golpe foi desferido contra amigos e alunos, sendo injusto para com estes, e injustiça é algo que eu não tolero.

Trabalhei durante dez anos e meio na livraria, começando na Siciliano (no tempo da franquia) e o tempo entre novembro de 2011 e outubro de 2015 já na Saraiva como responsável. Ouso dizer que ali construí uma casa feita não tijolo a tijolo, mas livro a livro, atendimento a atendimento, cliente a cliente, fazendo amigos e companheiros de leituras com quem trocava impressões e sensações das obras lidas. Ali, naquela livraria, passei a maior parte do meu tempo durante mais de uma década; ali passei meus aniversários, ali trabalhando perdi festas da família porque, devido a meu comprometimento e responsabilidade para com a empresa, não podia faltar ao trabalho; ali trabalhei doente, por vezes sem condições físicas ou psicológicas, sofrendo com dores nas costas ou no joelho, independente do dia da semana ou horário. 
Talvez alguém pode vir a me perguntar se me arrependo, hoje, de tanto ter me dado, de tanto ter amado aquele lugar. Eu respondo com convicção e leveza na alma de que não. Não me arrependo em nada do que fiz e como fiz, e o fiz não pela empresa (jamais faria o que fiz por empresa alguma), mas pela livraria, pelo que aquele ambiente significava para mim e, acima de tudo, pelos leitores que lá frequentam, pelos amigos que fiz e pelos clientes (fidelizei bem poucos clientes, diga-se de passagem, pois as pessoas que eu atendi ali, eu não as via como clientes, mas como leitores, como pessoas que buscavam algo mais que um produto para comprar, buscavam ali livros).
Amei aquele lugar e ainda amo o que ele representa para mim, mas mesmo com tanta dedicação, dali fui posto para fora no ano passado, e isso foi um golpe baixo, vil, mas eu entendi e encarei aquilo com positividade, pois estava por demais acomodado e precisava dar uma guinada na minha vida, buscar novos ares, e assim o fiz, descansando meu espírito, trabalhando em outras coisas, cultivando outros sonhos e me joguei de cabeça na carreira, com todo o amor que reside em meu peito, na carreira de professor e fomentador de literatura.
Essa carreira de professor de literatura começou pra valer, de forma mais efetiva, no segundo semestre do ano passado quando organizei, junto com minha esposa, o curso Panorama da Literatura Ocidental. O curso, um antigo projeto meu, veio a atender aos pedidos de muitos amigos, leitores e clientes da livraria, que queriam um programa sistematizado sobre alguns dos principais autores da Literatura Ocidental, um curso que pudesse responder questões do tipo “quem e por que ler?”. Quando organizei tudo, que montei o projeto, apresentei-o à Saraiva, explicando as vantagens para a empresa, que tinha muito a ganhar explorando o programa, a ideia, etc., e eu só pedi em troca a autorização de utilizar o espaço do auditório. Passei semanas e meses a fio argumentando, mostrando as vantagens, e recebi, durante muito tempo, apenas o silêncio como resposta da empresa (resposta padrão da empresa). Chegou um momento em que eu precisava de uma definição imediata, pois precisava começar as inscrições do curso e as pessoas estavam expectantes quanto às aulas. Mandei inúmeros e-mails, mais uma vez, fazendo mil e uma propostas e me predispondo até a pagar pela utilização do espaço. Sabem qual foi a resposta da Saraiva (quando eles finalmente dignaram a me responder)? Não! Isso mesmo. Não! O espaço do auditório estava vetado para mim e como justificativa deram respostas vagas.
Na época fiquei muito chateado, pensando em cancelar o curso (já havia realizado as matrículas de vários alunos/amigos), mas surgiu uma solução graças à intervenção de amigos (eu sou uma pessoa muito rica de amigos. Se me falta riqueza material, me sobram os amigos, o que vale muito mais do que ouro, diamante, carros de luxo e imóveis luxuosos). Consegui um espaço para a realização do curso e tudo transcorreu magnificamente bem.
Dai aconteceu que fui demitido e algumas coisas vieram à tona, entre elas o motivo de eu não poder ter utilizado o espaço do auditório. Explicaram-me que o veto partiu só e unicamente de uma pessoa, que disse que assim o procedeu porque “não queria confundir as coisas, o profissional com a pessoa (comigo)”! Como assim? Eu, que sempre fui profissional, que nunca confundi as coisas, que sempre agi de forma ética e responsável, confundir as coisas? Respirei fundo para não explodir, para não perder a razão e deixar que a emoção falasse mais alto. Tal pessoa, agindo agora como bom-samaritano, agora que eu não mais fazia parte da empresa, para mostrar como era justo, ético e correto, agora abria o espaço para que eu pudesse fazer ali meus cursos, não só aquele que já estava em andamento, mas futuros cursos!
Eu sou calmo por natureza e, por mais orgulhoso que seja, sei respirar fundo e aguentar certas coisas que poucas pessoas são capazes de aguentar (quem me conhece sabe muito bem disso), e aceitei as desculpas (aceitei mesmo, não guardando qualquer tipo de ressentimento).
O tempo passou, o curso foi finalizado, comecei a desenvolver mil e uma atividades, até que meus amigos/leitores/alunos (todos clientes da Livraria Saraiva, diga-se de passagem) começaram a me pedir para realizar um novo curso, com uma nova proposta, uma vez que a experiência do semestre anterior fora tão proveitosa e enriquecedora para todos. Assim, desenvolvi, novamente junto com minha esposa, o projeto, apresentei a proposta do curso para os leitores sedentos de conhecimentos literários e o mostrei à Saraiva (agora as portas da livraria estavam abertas para mim), para saber se poderia utilizar, como me fora prometido, o espaço do auditório. Aconteceram alguns contratempos, sim, mas tudo foi acertado sem maiores dificuldades, e só iniciei o curso porque recebi, agora, o aval da empresa. Reservei as datas e horários com bastante antecedência, tudo de forma meticulosa e organizada (como são minhas coisas), abrindo não um curso, dando apenas prosseguimento à turma anterior, mas dois, para que novos alunos/leitores pudessem usufruir das experiências e conhecimentos que compartilharíamos em cada aula.
Tudo correu perfeitamente bem até que ontem à tarde, quarta-feira, dia 06 de julho, recebi um estranho e-mail da parte da Saraiva “solicitando/comunicando gentilmente” o cancelamento do curso, rompendo, de forma abrupta, a parceria com a livraria. 
Li aquele e-mail duas, três, dez, quinze, um sem-número de vezes para entender o que ele dizia! Depois de entender o que ele significava, às vésperas do fim do curso (quando faltam apenas três encontros/aulas), respondi-o em busca de uma justificativa para aquela decisão insensata, injustificável. Recebi como resposta um polido e-mail falando em mudanças de planos, em “mudanças na parceria” e agradecendo a minha “compreensão”! Compreensão? Quem foi e estava sendo compreensivo? Eu é que não! Mandei imediatamente um outro e-mail chamando-os à razão, explicando a insensatez do cancelamento do curso, da proibição da utilização do espaço da livraria (que havia sido reservado desde o início do ano – e eu só o ofereci porque tinha onde realizá-lo, porque tinha o aval da empresa). Mandei, também, outro e-mail explicando não a minha situação como professor, como responsável por um curso sério, mas a dos alunos, leitores, que são clientes da livraria, que compram muitos livros ali. Sabe qual resposta recebi? O silêncio (padrão Saraiva de resposta)!
Fiquei muito, muito e muito chateado mesmo com essa punhalada, não em mim (como disse, sou feito de ferro forte e aguento a pancada), mas dada naqueles que tão assiduamente frequentaram o curso, que com tanto gosto compraram os livros (não foram poucos os livros que a Saraiva vendeu aos participantes/alunos), agindo de forma completa e inteiramente injusta (e injustiça eu não tolero).
Senti-me injustiçado, tendo recebido o mais duro, vil e covarde golpe: o espaço foi vetado para mim, justo eu que ostentava (e ostento) com tanto orgulho o fato de ter justamente construído não só aquele espaço, mas todo o ambiente que o cerca!
Senti-me expulso de casa que eu mesmo construí com tanto amor, dia a dia, atendimento a atendimento, livro a livro, e a decepção é tamanha que, se não chorei com os olhos, chorei com a alma ao ser tratado como fui e estou sendo tratado por essa empresa hipócrita, que nada tem de humana, que muito exige, que tem um belo discurso, que tem os “pilares”, que tem uma “missão”, mas que, na prática, tudo aquilo não passa de palavras, de discurso vazio.
Sinto-me tão humilhado, sendo tratado com tamanho desrespeito e falta de consideração que não me vejo mais indo àquela livraria, frequentando aquele ambiente. Logo eu, um alguém que se orgulha tanto de ter feito o que fez, de ter agido como agiu, de ter me dado como me dei! Se não respeitam e escorraçam o ex-funcionário, que respeitassem ao menos o que aquela pessoa, o que aquele profissional, o que aquele ser humano representou e representa para aquela livraria (não para a empresa, mas para a livraria).

E agora alguém pode vir a me perguntar se eu me arrependo de ter feito o que fiz como fiz e o quanto fiz. Eu respondo com a mesma e serenidade de sempre que não. Não me arrependo em nada do que fiz, como fiz e o quanto fiz pela livraria, mas me arrependo enormemente de tudo que fiz, como fiz e quanto fiz pela empresa, que sempre se mostrou, desde o início, uma empresa gerida não por livreiros, mas por pura e simplesmente por profissionais/diretores que nunca estiveram investidos do espírito livreiro, que sempre fizeram questão de desprezar o componente essencial para se ser reconhecido e prosperar nessa área de negócio: a paixão.
A Saraiva nunca foi, não é e nunca será uma verdadeira livraria que honre esse título; nunca foi, não é e nunca será uma empresa de palavra, que valorize os profissionais que merecem ser valorizados, que deram mais do que seu sangue para que ela se tornasse o que se tornou, que deram sua alma e paixão por aquilo que acreditavam (e ainda acreditam) para que a livraria fosse mais do que uma empresa e seus funcionários, mais do que simples “colaboradores”...

sábado, 20 de fevereiro de 2016

O Eco de uma voz


Ontem eu fui dormir triste.
Ministrei uma aula de literatura em que correu tudo bem: usei um belo e tocante vídeo (curta de animação) que contagiou e arrancou risos e lágrimas de algumas pessoas da plateia; a conversa sobre paixão pela arte das letras correu maravilhosamente bem, com as pessoas interagindo, anotando os nomes dos autores e livros que mencionei para, assim que terminasse a aula, pudessem correr à livraria mais próxima a fim de comprar as obras; ao final de aula, reservamos um espaço para discussões diversas e para uma breve, porém essencial, confraternização. Finda as formalidades da aula, sai do auditório com a sensação de dever cumprido, de que dei o meu melhor, de que a semente de literatura fora planta e que iria germinar, dar um pequeno broto, se tornar uma plantinha, que vai fincar bem fundo suas raízes, que se tornará uma frondosa árvore. Mas, ao chegar a casa, recebi uma triste de notícia que me deixou um tanto quanto abalado e me fez demorar a pegar no sono: Umberto Eco morreu!
Mas como assim, morreu?! Eu havia acabado de ministrar uma aula em que, mais uma vez, o usei como exemplo, mencionei suas obras, falei de sua importância não só para a literatura, mas para toda a cultura ocidental! E ao chegar a casa, a notícia que me tirou o chão, que me fez sentir um imenso vazio no peito e nas estantes onde guardo meus livros, que com que passasse sentir um sentimento de orfandade...
A literatura, ao longo dos séculos, passou por diversas transformações e evoluções. Vivemos uma Era de Formação, verdadeiramente Mitológica, em que nomes tão distante, mas ao mesmo tempo tão próximos, surgiram e moldaram a nossa forma de escrever, de ver o mundo, de sentir as palavras. Homero, Esopo, Sófocles, Eurípides, Virgílio, Dante, Shakespeare, Camões, Rabelais, Racine, Montaigne, Cervantes e tantos e tantos e tantos outros que fazem parte de nosso imaginário e que já foram incorporados ao nosso código genético, que tiveram e têm um papel fundamental na nossa formação humanística.
Depois dessa época, que lançou as bases e alicerces da nossa literatura e da nossa cultura, vivemos uma Era de Ouro entre o século XIX e primeiros anos do XX. A literatura se espalhou por todo o corpo. Se antes era somente o gene, agora passou a ser um aglomerado de células compondo um tecido, depois um órgão e, por fim, Sistema que propulsiona o nosso organismo e nos mantém vivos. Em todos os países surgiram gigantes que assombraram a literatura e a cultura mundial. Jane Austen, Charles Dickens, as irmãs Brontë, Stevenson e Thomas Hardy; Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós; Stendhal, Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, Victor Hugo, Gustav Flaubert, Émile Zolá, Maupassant, Baudelaire e Malarmé; José de Alencar, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Machado de Assis, Lima Barreto e Olavo Bilac; Goethe, Schiller, Novalis, Heine e Rilke; Pirandelo e Lampedusa; Puchkin, Gógol, Turgueniev, Dostoievski, Tolstoi, Tchekhov e Gorki; Poe, Hawthorne, Melville, Whitman e Twain; Kazantzakis e Kavafis; isso para citar somente uns poucos, pois se fôssemos citar todos, não caberia num único texto.
Na primeira metade do século XX, ainda sob o eco da Era de Ouro, que vinha perdendo relativa força, as principais “potências culturais e literárias” europeia perderam um pouco de força, muito embora tenham nos legado grandes gênios como Kafka, Brecht, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Mário de Sá-Carneiro, Unamuno, Pasternak, Maikóvski, Oscar Wilde, Lawrence, Virgínia Woolf, James Joyce, Hesse, Thomas Mann, Proust, Sartre, Beauvoir e Sartre. Poucos comparado ao período anterior. Fato é que a literatura mudara de ambiente, e alguns dos grandes nomes nascia do outro lado do oceano. Borges, Casares, Mistral, Neruda, Donoso, Onetti, Octávio Paz e Juan Rulfo foram os que puxaram o boom latino-americano com sotaque hispânico; mais ao norte, Faulkner, Hemingway, Steinbeck, Salinger, Henry Miller, Capote e Eugene O’Neill; o Brasil viveu sua Era de Ouro entre as décadas de 1930 e 1950/60, com nomes como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Graciliano Ramos, Rachel de Queirós, Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, João Guimarães-Rosa e Clarice Lispector; esses e outros passaram a assombrar o mundo com uma poderosíssima, mas até então desconhecida por muitos leitores, literatura, que passara subitamente a ser obrigatória em toda e qualquer estante de livros ao redor do mundo.
No entanto, mesmo com tantos nomes, mesmo com tantos autores tendo surgido num curto espaço de um século e meio, a maternidade literária, os tempos seguintes não foram tão generosos conosco, pobres e apaixonados leitores. Vieram, sim, Saramago, Garcia-Márquez, Llosa, Calvino, Philip Roth, Paul Auster, Kundera, Coetzee, Chimamanda Ngozi Adichie, Chinua Achebe, Pepetela, Ondjaki e Mia Couto. Poucos, pouquíssimos diante da nossa sede de literatura, da necessidade intrínseca que temos de mais, mais e mais grandes autores. Desses, Calvino, Saramago, Gabo e Achebe já nos deixaram; Roth se aposentou; Kundera há tempos não lança uma obra que nos deixe em êxtase, e mesma coisa se aplica a Coetzee; Llosa e Auster até lançam bons livros, mas nada que se comparam aos seus livros de alguns anos atrás. Resta-nos, portanto, a poderosíssima Chimamanda, uma verdadeira ilha literária que surge em meio a um tempestuosos oceano, que assombra por sua literatura lírica, poderosa e politizada, e os africanos de língua portuguesa, que, além de tudo, fazem um trabalho excepcional em prol da língua, divulgando mais do que literatura, promovendo em todo o mundo um vasto universo cultural que é produzido pelos falantes de língua portuguesa. Com estes, restam-nos pouquíssimos autores que ocupam “lugar de honra” nos nossos corações-literários e nas nossas estantes.
Com a recém-perda de Umberto Eco, um súbito vazio intelectual nos toma. Eco tornou-se uma figura presente, respeitada e admirada em todo o mundo por sua inteligência e postura, como um dos maiores intelectuais do século XX que se mantinha ativo. Mesmo quem o leu pouco, tendo tido a oportunidade se deleitar apenas com um ou outro texto, e até quem não o leu, tinha um respeito imenso pelo italiano. Conhecido sobretudo pelo seu romance O Nome da Rosa, que recebeu uma primorosa adaptação para o cinema na década de 1980, Eco é muito maior e muito mais labiríntico do que o romance que projetou sua carreira mundialmente. Crítico, filósofo, semiólogo, linguista, romancista e historiador... é difícil definir quem foi Eco e qual de suas faces é a que mais nos toca, a que mais nos engrandece e enriquece. Multifacetado, foi um intelectual que ultrapassou as barreiras do sec. XX e chegou ativo ao XXI, era em que nos vemos tão carentes de pessoas a quem admirar. Sua vida, ceifada tão bruscamente quando menos esperávamos, deixa um vazio imenso não só em nossos corações, mas também em nossas estantes de livros. Agora, quando mirarmos a estante e vermos seus livros ali expostos, imortais, que serão herança para futuras gerações de leitores, nos sentiremos órfãos, pois não mais aguardaremos ansiosos pelos seus próximos lançamentos. Além disso tem o agravante de que nessa época, tão escassa de intelectuais, não sabemos mais quem expor com orgulho numa prateleira de destaque como sendo “meu autor favorito vivo”.
Resta-nos, como leitores, apenas nos conformar, pois ele, mesmo que chegássemos a pensar e desejar o contrário, era mortal, como eu sou, como todos somos, e ler e admirar até o fim dos tempos a sua obra, toma-lo, mais do que nunca, como referência e ouvir o eco de sua voz, que calou como efeito sonoro, mas continua a reverberar em sua obra.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

O Livro do Rei dos Gatos

A pequena Karolinne andava segurando firmemente na mão protetora de sua mãe. Tinha medo de se perder no meio daquela multidão, com pessoas andando apressadas de um lado para o outro. Sua mãe caminhava apressada, pois ainda tinha muito até o final daquele dia, e vez por outra, quando a pequena menina diminuía o passo para observar algo que lhe chamava a atenção, a mulher a puxava bruscamente.
            Era meio dia, horário em que as pessoas estão mais apressadas, seja para correrem para casa a fim de fazerem uma breve refeição e retomarem em seguida para a segunda parte de sua jornada de trabalho, seja para fugirem do sol inclemente, buscando desesperadamente por uma sombra. O barulho das ruas era ensurdecedor, com carros buzinando, com o barulho dos motores, com as lojas anunciando as ofertas em alto-falantes, com as pessoas falando alto para poderem se fazer ouvir, e a menina, cansada, era quase arrastada por sua mãe, que queria fugir o quanto antes daquele caos urbano de centro de cidade. Karolinne estava com calor e ao ver um carrinho de sorvete, pediu para sua mãe comprar um. A mulher, a princípio relutante, pois não queria se atrasar, negou o pedido da filha, mas não conseguiu resistir aqueles lindos e brilhantes olhos suplicantes.
            - ‘Tá bom, Karol! Vou comprar seu sorvete, mas fique exatamente aqui – falou a mulher, deixando a filha sentada num banco enquanto ia comprar o que a filha pedira.
            A menina, comportada, ficou exatamente como e onde a mãe mandara, sentada e protegida sob sombra de uma frondosa árvore, vendo a mulher se fundir à multidão. Ficou balançando suas perninhas curtas, olhando as pessoas caminhando apressadas, indo de um lugar para o outro. Olhava, vez por outra, para o céu, que estava de um azul claro, belo, naquele horário, sem nenhuma nuvem. As folhas da árvore não se moviam um centímetro sequer e a menina sentia o suor deixando grudados fios de cabelo no alto da cabeça. Fechou os olhos e sentiu uma suave e fria brisa lhe envolver. Quando abriu os olhos, viu, parado, a poucos metros de onde estava, um gato cinza lhe olhando nos olhos. A menina achou estranho um gato ali, despercebido entre tantas pessoas. Sorriu para ele e o chamou com sua mãozinha, mas o gato não deu um único passo em sua direção, mas balançou o rabo e se virou. Com um andar suave, começou a passar por entre as pernas das pessoas, que sequer o notavam. A menina, curiosa, olhou para o lado, para onde sua mãe tinha ido, e a viu ainda na fila para comprar o sorvete, e olhou para onde o gato sumira, e viu apenas a ponta de sua cauda. Não pensou duas vezes e saltou no chão e correu em direção ao gato, chamando-o. Passou esbarrando nas pessoas, que desviavam dela e gritavam às suas costas “cuidado por onde anda, menina!”. Perdeu de vista duas ou três vezes o gato, mas logo encontrava seu rastro, a ponta de seu rabo dobrando uma esquina ou outra. Corria o máximo que lhe permitiam suas pernas curtas. Passou por becos estreitos por onde só andavam umas poucas pessoas, atravessou ruas antigas pelas quais ela não lembrava de ter passado, até que se viu sozinha num beco aparentemente sem saída. Com a certeza de que tinha se perdido, sentiu as lágrimas lhe vindo aos olhos e a garganta ficar apertada com um soluço, quando viu, pouco a sua frente, o gato, que estava como que lhe esperando. Ele miou e se virou, atravessando as grades de uma enorme casa. A menina correu até onde estava, implorando para que o bichano a esperasse, mas ele não lhe deu ouvidos.
            Karolinne parou em frente a um casarão abandonado, com erva daninha cobrindo toda a entrada e com as grades enferrujadas. Sentiu certo medo, pois casarões daquele tipo lhe lembravam os fantasmas e bruxas que habitavam casas daquele tipo nas histórias que li e nos filmes que assistia, mas ao ver o gato entrando por aquela porta, seu medo se dissipou e ela empurrou o portão enferrujado, que abriu facilmente, dando-lhe passagem. Ela correu até a porta, que estava parcialmente aberta, e a empurrou para poder entrar, e tal não foi a surpresa ao ver, ao invés de um interior deteriorado, de uma casa velha como sua fachada deduzia, uma imensidão de estantes e livros, tudo organizado, bonito, convidativo a um passeio nas páginas e melífluas palavras de um autor.
            Andou pelos corredores atulhados de livros, com estantes do chão ao teto dos mais variados títulos e se perdeu e se achou um sem número de vezes, deixando-se guiar apenas pelo instinto. Passava a mão nas lombadas dos livros e vez por outra tirava um ou outro para folhear. Um livro lhe chamou a atenção, e ela sentiu uma força irresistível vindo dele, como se ele estivesse clamando para ser lido. Karolinne o retirou da estante. Era um livro comum entre tantos outros livros iguais na sua aparência, tinha uma capa dura e não era tão volumoso, era repleto de belas ilustrações e a história era a de um Rei Gato. Só então, ao ver o título do livro, foi que ela se lembrou que tinha esquecido completamente do gato que seguira, que a conduzira até ali. Fechou o livro de supetão e levantou a cabeça e se espantou a ver não só um gato, mas vários ao seu redor, e entre eles, aquele gato cinza que a trouxera até ali. Sentiu o coração acelerar ao se ver cercada por tantos gatos, mas aquele que havia seguido deu um passo á frente dos demais, abriu a boca, mas ao invés de soltar um miado, falou suavemente.
            - Não tenha medo, Linda Menina. Nós não lhe faremos nenhum mal. Eu só lhe trouxe até aqui para que você encontrasse entre esses tantos livros que aqui estão, aquele que nos é o mais precioso, o que tem a mais bela história, e queria que você o lesse para nós.
            A menina ficou estática, pois nunca tinha visto um gato falando. Olhou para os outros e os viu sentando-se e assentindo, esperando para que ela abrisse novamente o livro e iniciasse a leitura. Eram tantos gatos, de todos os tamanhos, cores e idades, todos expectantes, observando-a detidamente. Um a um, os gatos começaram a abrir a boca e falar, pedir, suplicar para que ela lesse aquele precioso livro para eles, e ela sorriu ao ver tantos gatos falando.
            - Tudo bem. Eu irei ler pra vocês! – disse ela.
            Os gatos soltaram gritos e miados entusiasmados ao ouvirem aquilo. Ela então se sentou e abriu o livro no colo, e os gatos logo a cercaram. Alguns se empoleiravam em seus ombros para melhor verem as letras graúdas e as imagens, uns esticavam os pescoços para melhor verem e seguirem a história, enquanto outros simplesmente ficavam perto, deitando-se e fechando os olhos para melhor imaginarem e viverem aquela fantástica história.
            Karolinne ficou longas horas lendo a história do lendário Rei dos Gatos, que havia sumido há séculos, mas que deixara um importante legado e uma infinidade de súditos que deveriam aguardar pelo seu retorno, que aconteceria quando aquele livro fosse lido por mil e uma meninas especiais, que acreditassem naquelas palavras e lessem aquele livro para mil e um gatos nos dias seguintes à descoberta do livro, na janela de sua casa, e espalhassem aquela história para todos os gatos do mundo, e quando isso acontecesse, que todos os gatos soubessem da história do Rei dos Gatos, ele retornaria e seu reino seria restabelecido, e todas as pessoas do mundo não mais ouviriam os miados dos gatos, mas sim suas verdadeiras vozes.
            A menina terminou a história e respirou fundo duas ou três vezes e ficou completamente em silêncio antes de se dar conta de que estava novamente sozinha entre aquelas estantes. Dos gatos, todos que antes estavam ali, somente um, aquele que a trouxera, permanecia. Ela então se deu conta de que um longo tempo já tinha se passado, de que sua mãe devia estar preocupada com seu sumiço, e saiu correndo daquela casa, levando consigo o livro debaixo do braço.
            Seu instinto a guiou pelas mesmas ruas e becos que tinha percorrido antes, até encontrar o mesmo banco sob a mesma árvore. Correu até lá e ao se sentar, viu sua mãe vindo em sua direção com um sorvete.
            - Trouxe de baunilha, seu sabor favorito – disse a mulher, entregando para a filha o sorvete.
            Karolinne olhou para a mãe, e só então se deu conta de que o tempo não tinha passado. Se perguntou se aquela aventura, aquela perseguição ao gato, a leitura, a história e o livro tinham realmente acontecido.
            - O que é isso? Onde você achou esse livro? – perguntou sua mãe, apontando para o livro que estava embaixo do braço da menina.
            - Esse livro? Ah, eu achei! – falou ela, dando a resposta mais óbvia que toda criança daria numa situação daquelas. A mulher apenas sorriu, passou a mão na cabeça da filha e esperou que ela terminasse de tomar seu sorvete.
            Foram para casa, mas sem pressa de chegar, com Karolinne protegendo seu precioso tesouro.

Naquela noite e nas noites seguintes, assim que todos iam dormir, ela abria a janela de seu quarto e no silêncio da noite, esperava que um gato qualquer passasse por ali, e quando isso acontecia, ela abria o livro e lia a história do Rei dos Gatos. Quando terminava, o gato soltava um miado de aprovação, pulava o muro e ia embora, e ela fechava o livro e ia dormir. Fez isso por muito tempo, por exatas mil e umas noites seguidas, lendo a história e difundindo-a para mil e um gatos. Quando terminou a milésima primeira leitura, fechou o livro e o guardou na sua prateleira de livros.
            O tempo passou, e Karolinne já não era mais uma pequena menina como outrora, e muitas coisas que vivera na infância já eram apenas, agora, vagas lembranças. Havia se tornado uma bela mulher e tinha uma linda filha. Karolinne estava apressada, como sempre andava nos últimos tempos, e caminhava esbarrando nas pessoas pelo centro da cidade, carregando pela mão a filha, que reclamava do calor e do cansaço.
            - Mãe, eu quero um sorvete – pediu a menina.
Karolinne, contrariada, queria ir para casa, onde tinha muita coisa a fazer, mas a filha realmente estava cansada e adorava sorvete. Levou-a até um banco de praça e pediu para que ela ali ficasse, e foi comprar o sorvete da filha.

Enquanto estava na fila para comprar o sorvete, viu a menina se levantar e sair correndo. Pensou, por um instante, em gritar, chamando-a, pois ela poderia se perder, quando viu o que havia chamado a atenção da menina: um gato, o mesmo gato que ela seguira outrora. Ela sorriu por dentro, tomada um turbilhão de lembranças. Comprou um sorvete para si mesma e ficou esperando que filha retornasse, para só então comprar o dela e ver, reconhecer, o livro que ela traria para casa e leria para os gatos, através da janela aberta, pelas mil e uma noites seguintes.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Retrospectiva 2015 de leitura

Nunca é fácil olhar para trás e ver todos os livros lidos no ano anterior. Sempre que faço as minhas retrospectivas de leitura, tenho a certeza de que não li o que e quanto deveria, fico com aquela sensação de ter usado erradamente meu tempo ao ler determinado livro que não me proporcionou prazer algum nem me acresceu em absolutamente nada, fico emocionado ao relembrar a história e personagem de tal obra que me marcou profundamente...
            No geral, infelizmente 2015 não foi um ano tão proveitoso no que tange às leituras como anos anteriores. Muitas coisas interferiram, entre elas a mal escolha, em dados momentos, dos livros , o que me gerou maior lentidão na leitura, uma vez que as leituras não estavam sendo tão empolgantes e prazerosas quanto eu esperava e precisava, e por conta de trabalho, estudos e um monte de outros fatores extra-leitura. Mas mesmo assim, foram, aos trancos e barrancos, 43 livros, no entanto, 1 foi abandonado (porque tive que devolver – tratava-se de um livro que havia pego emprestado) e 3 lidos parcialmente (a maior parte – diga-se de passagem), tendo iniciado o meu 2015 com a leitura de Vida e Destino, de Vassili Grossman, obra muitíssimo interessante sob o prisma histórico, mas que no que tange a literatura se mostrou um tanto quanto “não das melhores”, e finalizou com Meio Sol Amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie, o melhor livro de literatura africana que já li em minha vida, uma grantíssima surpresa que me foi reservada justamente para o “apagar das luzes” do meu ano de leitura.
            No que se refere aos melhores livros, nunca um ano de leituras foi tão difícil de definir aquele que rotulo como “o melhor do ano”. Além do Meio Sol Amarelo, obra que não canso de recomendar, elogiar e recomendar a leitura, destaco também No silêncio entre dois suspiros, de Ayad Akhtar, além dos clássicos que me deixaram em êxtase, O Quinze, de Rachel de Queiroz, do poderosíssimo Carta ao Pai, de Kafka, dos gregos Antígona, de Sófocles, Hipólito, de Eurípides, e do estupendo e divertidíssimo Lisístrata, de Aristófanes, e seguindo no mesmo gênero do teatro, destaco também o Fedra, do francês Racine, fora o filosófico e extraordinário O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse. No outro extremo, destaco entre meus piores livros do ano, que me decepcionaram enormemente, que não recomendo a ninguém, estão A Última Imperatriz, de Da Chen (o mesmo autor de A Montanha e o Rio) e A Fazenda, de Tom Rob Smith, além do vencedor do Nobel de Literatura Patrick Modiano com o livro Remissão da Pena, livro que não empolga, que não tem um personagem cativante, que não tem uma narrativa que prenda, enfim, que não tem graça e que não me proporcionou em momento algum um momento de prazer e deleite literário, e do famigerado Ateneu, de Raul Pompéia, que foi uma leitura arrastada, chata e cansativa.
            Entre tantos livros, em 2015 fui da leitura de tirinhas de Snoopy e Calvin & Haroldo, que adoro, passando por Hamlet e por obras de Machado de Assis, tanto em sua face romântica com Helena quanto numa fase mais adiantada, com O Alienista, visitando os russos com Gogól com a novela A Briga dos dois Ivans, Maiakovski com  Percevejo, Dostoievski com Bobók e No Campo de Honra do Isaac Bábel. Li também obras de cunho histórico como o indispensável História Concisa da Rússia, de Paul Bushkovitch; obras de cunho teórico-crítico-literário, como livros de Harold Bloom e Massaud Moisés. Fora esses, ainda arranjei tempo para ler John Boyne, O ladrão do Tempo e A Casa Assombrada, para conhecer Lima Barreto com Triste Fim de Policarpo Quaresma; e meu primeiro Simenon, com Maigret e a Mulher do Ladrão.

            Pois é, apesar de não ter sido um ano tão recheado como anos anteriores, foi, no fim das contas, um bom ano de leitura, com uma boa multiplicidade de obras nas quais mergulhei e das quais extrai muita coisa boa, desde o simples grego antigo da Era de Ouro do teatro aos complexo Calvin, Charlie Brown e Snoopy.

1º de janeiro: o melhor dia do ano

Para mim, o melhor dia do ano é 1º de janeiro. Começo a contar os dias, em angustiante espera, desde o dia 2 de janeiro, observando o movimento da Terra em torno do sol, na ansiedade para que chegue logo o primeiro dia do ano seguinte só para poder ter o mundo inteiro só pra mim. Sim. O mundo inteiro.
            No dia 31 de dezembro, como já é de praxe, grande parte das pessoas sai, vai comemorar a chegada do ano novo em praias, organizam festas em família, ficam acordados até mais tarde, etc., de forma tal que nas manhãs do dia 1º a impressão que se tem, ao sair nas ruas, ao abrir uma janela, é a de que a humanidade foi extinta e só sobrou você na face da Terra. Não existe barulho algum de carros, não existem vozes de pessoas falando alto, não existem barulhos de portas e janelas sendo abertas e fechadas, ninguém faz questão de ligar o som em volume máximo para compartilhar aquela música odiada por todos, exceto por aquele que quer compartilhá-la com todos, etc. Enfim, manhã do primeiro dia do ano é o momento de paz e silêncio total, tanto que é justamente neste dia que podemos nos dar ao luxo de ficar e sentir realmente o silêncio em toda a sua plenitude. Podemos ouvir o uivo do vento, podemos ouvir a orquestra sinfônica dos pássaros que, felizes, podem encher os pulmões sem vergonha de suas notas harmoniosas atrapalharem os barulhos alheios. Podemos até sair na rua para uma caminhada/corridinha matinal sem nos preocuparmos com os carros que passam apressados ao nosso lado, chegando ao máximo até de ouvir o som de nossos próprios passos no asfalto da avenida!
            Sei que estou sendo um tanto quanto egoísta, sim, em ter o mundo inteiro só pra mim, mas em que outro dia do ano tenho esse privilégio? Pelo menos tenho o mundo só pra mim (e me vanglorio disso) até o início da tarde, que é quando aquele mal-educado da rua de frente acorda e liga o som com o intuito de compartilhar com o bairro inteiro aquela música que somente ele, em toda a sua insanidade, acha que as pessoas querem ouvir. Com esse ato o mundo começa a acordar (de ressaca) e o mundo volta a ser mundo, com todos os seus barulhos, e eu me vejo na obrigação de compartilhá-lo com os demais viventes deste planeta. Só fico triste pelos pássaros, que passam a ser obrigados a cantar baixinho para não incomodar o barulho das  pessoas...